Marina Manda Lembranças E stava eu no avião, voltando da Feira Literária de Ponta Grossa quando, repentina, sentou no assento ao meu...
Marina Manda Lembranças
Não era um sorriso qualquer, de conveniência ou delicadeza. Era sorriso radiante, solar, que transmitia alegria de viver de uma intensidade quase animal. Reparei nas mãos pequenas, agarradas aos braços do assento, e instintivamente olhei o mar lá embaixo, cintilante de pequenas ondas, pensando que de lá tinha vindo. A cabeleira emaranhada ainda gotejava sobre o rosto, e a partir da cintura luziam as escamas nacaradas.
Emanava dela um perfume estranho, cheiro de mar mesclado ao odor das axilas de delicado pelo, volúpia de pele jovem sob o sol.
Não portava celular.
E porque eu olhava para ela, apresentou-se sem estender a mão: "Sou Lighea, filha de Calliope”. Que voz mais surpreendente ela tinha! Com certeza havia puxado à mãe, a deusa da bela voz, musa dos poetas. Como num vinho, colhiam-se em seu falar notas cítricas, guturais, e pareceu-me identificar murmúrios de espuma sobre a areia, ventos cantantes ao luar. Naquele momento, pensei que fosse pura lenda o cantar irresistível atribuído às da sua espécie, e que o encantamento fosse a própria voz alinhavando palavras com sotaque grego. Mas é claro que, sendo eu mulher — assim como a parte superior dela — não era objeto dos seus desejos e não desperdiçaria comigo seu canto.
Tinha olhos verdes e grandes, no rosto pequeno. “Não acredite nas lendas que contam sobre nós — disse —. Não matamos ninguém. Só queremos amar.”
Lembrei a ela que devia afivelar o cinto de segurança.
Quando a aeromoça passou com o carrinho oferecendo biscoitos ou batatinhas fritas, sacudiu a cabeça em negativa — algumas gotas salgadas respingaram no meu braço — e debruçando-se para o meu lado segredou: “Só como coisas cruas — deu um risinho maroto — e vivas.”
Assim mesmo, pensando que tivesse sede, eu havia pedido à aeromoça mais um copo de água, que lhe ofereci. Logo percebi que não sabia beber no copo, e despejei um pouco de água na sua palma minúscula, ligeiramente esverdeada. Lambeu como um cachorrinho. E fez cara de desagrado: "Falta sal!”, queixou-se.
Era uma adolescente de milhares de anos. Imortal e animal ao mesmo tempo, pertencia ao Olimpo da sua família, e ao mar de seus semelhantes. Em certo momento, parecendo muito mais velha, me disse com altivez: "Eu sou tudo, porque não sou mais do que um fluxo de vida sem falhas.” E depois falou da sua vida submarina, dos tritões barbudos, das cavernas escuras, e afirmou que a verdade só se encontra no fundo mais fundo, no palácio cego e mudo das águas enormes, eternas, sem luz, sem murmúrios.
Nisso, o comandante avisou que estávamos começando o procedimento de descida, foi nos pedido para verificar os cintos e erguer o espaldar dos assentos. Fechei o livro que vinha lendo. E bastou esse gesto para devolver minha companheira de viagem ao seu papel de personagem, e restitui-la às páginas de onde havia se materializado.
“O professor e a sereia” é um conto longo de Giuseppe Tomasi Di Lampedusa, hino à vida escrito quando o autor já estava próximo da morte. O conto, que foi publicado postumamente, tinha também outro título, “Lighea” escolhido pela mulher de Lampedusa.
Mas quem procurar Lighea na internet, mais facilmente o achará como nome de um vinho do que como referência literária ou mitológica. O branco “Lighea di Donnafugata” soma duas criações especialmente caras ao autor, a sereia e o grande palácio siciliano onde as personagens do seu romance “O Gattopardo” passam as férias.