Marina Manda Lembranças H á dias, como estes em que tudo ao redor parece convulsionado, em que preciso mais de paz do que em outros. E...
Marina Manda Lembranças
Faz-se necessário explicar. Meu prédio tem duas entradas, uma cômoda, atravessando uma vila antiga, outra, um pouco mais distante porém sombreada e mais harmoniosa. Quem chega no hall do edifício depara-se com um lago povoado de carpas.
Serão umas quinze as que ali nadam, gordas, rosadas, pacíficas. Vivem como funcionárias públicas sem necessidade de marcar relógio de ponto. Sua única tarefa é ornamentar, o que fazem a contento e sem maior esforço. A comida está garantida, o emprego é vitalício.
O laguinho em que moram e onde boa parte nasceu não tem mais que um metro de profundidade, o espaço não é abundante. Mas nenhuma delas conhece a água fria e vibrante dos rios, nenhuma nadou contra a correnteza, nenhuma sabe que na China as suas irmãs são símbolo da honra. O que elas conhecem é só o laguinho, sem vegetação nas beiras, sem predadores de tocaia, sem riscos, sem desafios. E o laguinho lhes basta.
Duas tartarugas dividem o laguinho com as carpas. Uma maior, outra ainda pequena.
Embora elas também não conheçam outra coisa, o laguinho parece não lhes bastar. Vivem na água mas, ao contrário das carpas, precisam da terra.
Por isso, o porteiro fez para elas uma espécie de ilhota coberta de areia e pedrinhas, encimada por uma lâmpada. E sempre, ao chegar ou sair, me enternece vê-las no seu refúgio, pescoço estendido, quentando falso sol. Precisam de calor, naquele laguinho onde sol autêntico não bate, e até fantasiei que fosse exigência do casco, necessidade de mantê-lo livre de pragas e fungos.
Não bastam, porém, ilha e lâmpada para tornar o laguinho suficiente. Pelo menos, não bastaram para uma delas, a maior, que no episódio a seguir revelou-se macho.
Acontece que, para oxigenar a água do laguinho e mantê-la limpa, há um motorzinho ao fundo. E o motorzinho gera mínima movimentação aquática ao redor.
Nada hoje, nada amanhã, o tartarugo percebeu em algum momento essa movimentação. Em momento seguinte, deu-se conta de um novo prazer, que seu companheiro, talvez também macho, não poderia lhe dar. E num terceiro momento introduziu no motorzinho seu pênis — que eu definiria pequeno, se soubesse de que tamanho deva ser um pênis de tartarugo.
Motores também se defendem. Considerando-se invadido, o motorzinho triturou sem piedade aquele órgão de talvez o tartarugo se orgulhasse.
O sangue ou qualquer outro indício, despertou a atenção do porteiro, o bichinho foi logo levado ao veterinário. Que disse não saber tratar dele. Para tartarugas, só veterinário especializado em “animais exóticos”. O único com essa especialidade atuava em Copacabana — eu moro em Ipanema. O tartarugo foi posto em uma caixa, e levado para lá.
Diagnóstico nefando: seria preciso decepar a peça estraçalhada, única maneira de evitar a infecção. E assim foi feito.
Agora, depois de quatro dias internado, o tartarugo voltou a quentar sol debaixo da lâmpada, a nadar mansamente entre as carpas. Mas quando olho para ele sinto mais do que ternura. Sinto piedade, porque à insuficiência do laguinho acrescentou-se a nova insuficiência. E desta, ele não terá como escapar.