Marina Manda Lembranças D ias inquietantes são esses em que a literatura é vista por um único viés, e em que livros para crianças e jov...
Marina Manda Lembranças
Mês passado, um livro antigo de Ana Maria Machado foi acusado, nas redes, de apologia do suicídio. Em resposta às mensagens de pais preocupados, a editora Global publicou uma nota explicando que o fato da personagem comer uma maçã para entrar no mundo dos sonhos era "um processo poético”.
Pais zelosos e pouco afeitos com processos poéticos, certamente atirariam ao fogo da inquisição “Alice no País das Maravilhas”. Aquela garrafinha com escrito “BEBA-ME”, cujo conteúdo a faz diminuir, é uma clara incitação às drogas. E aquele bolinho com escrito “COMA-ME” é sem dúvida um daqueles bolos de maconha que fizeram sucesso na década de 80. Não bastasse isso, Alice chuta um lagarto que sai voando pela chaminé, num evidente desrespeito aos animais, desrespeito duplicado com o aparecer de uma Tartaruga Falsa destinada a tornar-se Sopa de Tartaruga. E não só a Lagarta Azul fuma algo muito suspeito no narguilé, como diz para Alice comer um cogumelo — e cogumelos todo mundo sabe que efeitos podem ter.
“Caçadas de Pedrinho” de Lobato foi vetado em 2010 pelo Conselho Nacional de Educação por ter passagens racistas. Ainda bem que o Conselho não se ocupou de “As Aventuras de Tom Sawyer”, onde Mark Twain, considerado o pai do romance americano, fala de linchagens e escravatura, e ainda acrescenta um índio feroz e perverso. Pouco importa Twain ter dito que a maioria das aventuras do seu livro era baseada em experiências reais, e o fato dele próprio apoiar a abolição da escravatura e defender a igualdade de direitos para as mulheres. O que conta para inquisidores não é a realidade em que o livro se insere.
Em 2017, o Ministério da Educação recolheu o livro de José Mauro Brandt, porque em um dos contos uma menina é pedida em casamento pelo próprio pai. Na época, todos respiramos aliviados pelo Ministério não ter recolhido as antologias de Charles Perrault com seu lindo “Pele de Asno” em versos. E não ter vetado o filme de Jacques Demy que qualquer criança pode ver, devidamente legendado, no seu computador.
E agora temos o caso do Colégio Santo Agostinho, que retirou da lista de leitura do sexto ano o livro “Meninos sem pátria” de Luiz Puntel, lançado em 1981. O colégio atendeu pedido de pais, segundo os quais o romance “doutrina crianças com ideologia comunista”. Também neste caso, como no de Tom Sawyer, a narrativa é inspirada na realidade, o caso do jornalista mineiro José Maria Rabêlo, obrigado pela ditadura militar a se exilar com a mulher e os sete filhos. Puntel pegou leve, diminuiu para dois o número de filhos do seu personagem ficcional.
O pente da censura — e por que censura numa democracia? — para no politicamente correto. É onde temos o nó.
Gregório Samsa acordou transformado em um horrível inseto, Robinson Crusoe salva a vida do nativo Sexta-Feira mas faz dele seu escravo, Gulliver deixa evidente a supremacia dos mais altos sobre os baixinhos. Três grandes obras da literatura universal seriam jogadas às chamas se vistas pela estreita fresta do politicamente correto.
Os que olham por ela esquecem que o politicamente correto muda, enquanto a literatura permanece. Assim como esquecem — ou ignoram — que o valor da literatura está menos nas belas palavras, do que no retrato do ser humano que traça com elas. Um retrato universal e, como tal, cheio de diferenças.
Os que olham com óculos plurais sabem que quanto mais pontos de vista forem fornecidos às crianças, mais aptas elas estarão para enfrentar a vida.
Guardo uma antiga camiseta do projeto Prazer de Ler. Na estampa, um homem lê um livro sob um céu coalhado de estrelas. Assim é a literatura, cada livro uma estrela com sua própria magnitude cintilando para clarear a escuridão.