Marina Manda Lembranças A crônica de José Eduardo Agualusa desta semana diz de um homem que todo dia foi trabalhar debaixo de bombard...
Marina Manda Lembranças
Durante 55 dias, Huambo havia sido ferozmente bombardeado pela aviação do governo, e durante todos aqueles 55 dias um homem magro e tímido saiu para trabalhar, com seus óculos de lentes grossas e sua modéstia, enquanto os outros moradores da cidade se protegiam debaixo dos escombros das suas antigas casas; Agualusa, então jornalista, quis entrevistar aquele homem, jardineiro da Estufa Fria, o Jardim Botânico emblemático da cidade; e ao perguntar-lhe porque havia arriscado a vida para ir ao trabalho recebeu a seguinte resposta, “Não havia mais ninguém para tratar das flores. Se eu não fosse trabalhar, as plantas todas teriam morrido.”
Leio as crônicas de Agualusa porque gosto do equilíbrio com que ele organiza seus pensamentos, e porque com frequência me trazem uma africanidade que também é minha e da qual, de algum modo, sinto falta.
Suponho que a maioria ache a história desse jardineiro um admirável exemplo de dedicação ao trabalho. Não eu. Para mim, isso não tem nada a ver com trabalho, tem a ver com a preservação da vida.
Se o homem tivesse se arriscado para levar comida a cachorros retidos num canil ou a gatos e gatinhos abandonados, todo mundo entenderia o gesto. Já se fossem jacarés, muitos o achariam pirado, exótico. Atribuímos intensidade de vida a esta ou aquela espécie, guiados apenas pela intimidade com a nossa. Animais de sangue quente parecem mais próximos dos humanos, mais merecedores de afeto. Não assim as plantas.
Entretanto, a profissão de jardineiro só se exerce vivendo a vida das plantas, sentindo a vibração vital em cada folha ou flor. Muito se debochou de mulher que conversa com seu vaso de antúrios ou seu pé de alfavaca. Mas eu ganhei de presente uma orquídea miniatura roxa em um pote de vidro e a transplantei para um vasinho de barro arejado, pelo que ela logo me recompensou com uma folha nova. Uma folha nova é um filhote de planta e, como todo filhote, comove.
O jardineiro conversa com as plantas, mesmo que não seja em voz alta. É o médico que cura suas doenças, é o vigia que as defende de pragas e predadores. O jardineiro sabe que as plantas são tão vivas quanto cachorros, mas que, ao contrário de cachorros, não podem ir em busca de água quanto têm sede, nem podem fugir quando, em vez de estrelas, bombas caem do céu. As patas das plantas estão infiltradas no profundo da terra, impedidas de correr.
O homem magro de Huambo não trabalhava em uma repartição, nem em uma loja ou restaurante. Trabalhava na Estufa Fria, cartão postal da cidade desde os tempos da colonização. E se ele não tivesse ido trabalhar, é fato que as plantas morreriam, matando consigo aquilo que Huambo tinha de mais bonito.
Em Dresden, na Alemanha, quando ao fim da segunda guerra os bombardeios que arrasaram a cidade acabaram, as mulheres sobreviventes saíram dos seus esconderijos e começaram a empilhar tijolos e a varrer. Vassouras de nada teriam adiantado em Huambo, se as plantas, as plantas todas da Estufa Fria tivessem morrido.
Mas ao cabo daqueles 55 dias devastadores, quando as pessoas começaram a sair dos bunkers improvisados debaixo dos destroços, o verde da Estufa Fria há de ter ajudado a reconstruir a esperança.