Marina Manda Lembranças Q ue rica viagem a vida me proporcionou! Fui a dois espaços privilegiados de literatura. Duas escolas primária...
Marina Manda Lembranças
Espaços assim não acontecem por acaso, são fruto de determinação, pesquisa, experimentação.
Na Colômbia, fui apresentada a um coletivo de professores, na maioria mulheres, que há 15 anos se reúne pelo menos uma vez por mês, para re-pensar literatura e escrita em sala de aula. Os participantes são de diferentes cidades, e o propósito é complexo: introduzir as crianças no universo simbólico, permitindo a fruição estética da literatura, sem instrumentalização, sem uma “avaliação da compreensão leitora” esquematizada e, delícia das delícias, sem tédio e sem pressão.
O nome do coletivo é La Outra Orilla (a outra margem).
Durante um ano, boa parte da obra de um autor/autora latino americano considerado relevante pelo coletivo é lida pelas crianças. Que também são postas em contato com material biográfico, entrevistas, vídeos, fotos- quando não são elas mesmas que pesquisam. As crianças estão entre 4 e 10 anos de idade. Para as que ainda não sabem ler, os livros são lidos pela professora ou professor e, em casa, pelos pais.
Toda essa imersão é coroada ao fim do ano pela visita do autor.
O convite vindo de Neiva, me chegou no início do ano. E aceitei inicialmente meio às cegas, fiando-me na convidada do ano passado, escritora mais que brilhante e minha amiga do coração, a argentina Maria Teresa Andruetto. Se Teresa havia ido, eu podia ir de olhos fechados.
Mas embora os olhos me fossem abertos ao longo do ano por sucessivas mensagens, me surpreendi em pura comoção com o que me aguardava.
Na escola de Neiva passei praticamente o dia inteiro conversando com crianças. Uma turma de cada vez, uma hora para cada turma, a professora ou o professor assistindo. Nada de papeizinhos bem comportados escritos anteriormente em aula. Em seu lugar, perguntas espontâneas, interessantes, de leitores autônomos. O que mais me surpreendeu é que as crianças haviam lido livros meus que no Brasil são indicados para a faixa etária acima de 11 anos. E mais, algumas bem pequenas estavam fascinadas por “Penélope Manda Lembranças”, um livro centrado em metamorfose, sempre indicado para jovens adultos. Me revi, menina entre 6 e 7 anos, siderada pelos contos de Poe.
Depois de cada conversa, sessão de autógrafos. E que alegria fazer dedicatória em livros muito usados, folheados, desenhados, coloridos e, sobretudo, sublinhados. Livros de que o dono havia se apropriado, tornando-o parte da sua jovem experiência de vida.
Dia seguinte, mais duas turmas de crianças, um Encontro Conversante com professores e pais. E partimos para outra cidade a duas horas de distância, Girardot.
Ali, fiz conferência para professores, entre os quais vi algumas crianças. Logo após a palestra, ao abrir para as perguntas do público, me surpreendi quando as 9 crianças se posicionaram na primeira fila. Foram delas as perguntas sensatas e consequentes que respondi. Na plateia, os professores acompanhavam atentos, alguns filmavam.
Seguiu-se a apresentação dos trabalhos de duas professoras. Uma delas mostrou um vídeo de crianças - creio que do segundo ou terceiro ano- na roda de discussão de um livro que haviam lido. Compenetradas como adultos, cada uma com sua posição, discutiram várias questões. E percebi que as atividades de leitura em sala de aula eram filmadas, para posterior avaliação e estudo do colegiado.
Outro encanto me esperava no dia seguinte, na visita à escola pública de Flandes. Só primário. As crianças, penteadíssimas, uniformizadíssimas, me esperavam ansiosas. Elas também haviam lido livros meus indicados para crianças bem maiores. Cada uma segurava o seu livro, comprado pela família. E cada uma era um leitor em exercício. Gravaram resenhas. Fizeram perguntas. Me deram muitos beijos. Me fizeram muita festa.
Assim, pela segunda vez nesta viagem, vi confirmado o princípio que sempre norteou o meu trabalho: livros de literatura são para qualquer idade, pois seu rico conteúdo abre-se para infinitas leituras e interpretações. E as famosas faixas etárias são um recurso perverso de mercado, excludentes, pois privam jovens leitores de acesso a livros que só poderiam enriquecê-los.