Marina Manda Lembranças A imagem de Sully, o labrador do ex-presidente americano George H.W.Bush, deitado ao lado do caixão do seu do...
Marina Manda Lembranças
Sully desempenhava algumas das funções que haviam sido de Barbara Busch junto ao marido doente de Parkinson. Doado ao ex-presidente por uma ONG em abril, quando ela morreu, Sully abria e fechava portas, buscava objetos, ia em busca do telefone quando tocava, e, sobretudo, fazia companhia e dava carinho. Não sabia cozinhar, mas é pouco provável que Barbara se desempenhasse na cozinha.
Faz tempos, vi uma bonita cena de amor entre cachorro e dono. O dono, um cego jovem, alto e louro, vinha com seu cão guia andando na calçada. De repente parou, acocorou-se, e procurando na mochila que havia descarregado no chão, sacou um tubo de dentifrício, uma escova, espremeu um na outra e, com toda delicadeza, começou a escovar os dentes do cão.
Eu tinha cerca de três anos quando morei em Tripoli, na Líbia. Não lembro da casa, não tenho nenhuma recordação da cidade, mas nunca esqueci o cão pelo-de-arame que vinha todos os dias me acordar a poder de lambidas.
E dizer que nas américas virou moda derrubar ou decapitar estátuas de Cristovão Colombo. Quanta ingratidão! Apesar da presença de canídeos na América do Norte ter dezenas de milhares de anos, a grande maioria dos cães do continente veio da Europa trazida pelos “descobridores”, após 1492. Não fosse Colombo, Nova Iorque não seria o paraíso dos cães que é hoje, com uma média de 1200 por área de código postal. E muita gente boa perderia sua fonte de renda. Um passeador de cães fatura por ano entre 25 a 45 mil dólares. Os mais caros oferecem serviço VIP, um cachorro de cada vez, seguro para o cão durante o passeio, acompanhamento por GPS para o dono, paradas estratégicas para beber água.
Amamos os cães, esquecidos de sua procedência. Os lobos, seus remotos antepassados, foram caçados sem piedade. Simbólicamente confundidos com demônios que comiam o corpo para apossar-se da alma, usaram-se contra eles balas feitas de medalhas religiosas fundidas- não à toa São Francisco domou a poder de orações um lobo feroz que aterrorizava a região de Gubbio. Caçá-los era um ótimo negócio, pois governos locais pagavam a quem trouxesse patas ou cabeças de lobo. Hoje estão extintos em grande parte da Europa.
Quando vou à Colômbia, e vou com frequência por razões profissionais, começo a encontrar cães farejadores do aeroporto, e sei que os encontrarei depois nos lugares onde costuma haver muita gente, shoppings, feiras literárias, concentrações de restaurantes ou hotéis. São quase todos retriver, como Sully. E como Sully tem um ar bonachão. Eu sempre tenho vontade de chama-los, fazer-lhes um carinho, embora sabendo que não posso, eles estão trabalhando, e muito empenhados.
Mas é possível que farejem, ou sintam meu carinho. Porque os cães, mais do que qualquer outro animal, entendem os sinais transmitidos pelos humanos.
Cientistas americanos e alemães testaram esse entendimento em cachorros, lobos e nosso parente mais próximo, o chimpanzé. Os chimpanzés são capazes de captar mínimas mudanças no olhar humano, os lobos são muito inteligentes e estão acostumados com organização pois vivem em bandos, mas os cachorros superaram todos. Como Sully, atenderam comandos, entenderam olhares, estabeleceram cumplicidade. Tivesse havido tempo e clima para isso, teriam criado uma rede de afeto com os cientistas, que os levaria a deitar diante de suas camas, como Sully diante do caixão.