Marina Manda Lembranças A gente passa pelas coisas e mal vê, a gente lê os livros e mal lembra. Um dia estica a mão, cata o livro qu...
Marina Manda Lembranças
Porque uma estrutura metálica temporária o permitiu, Calvino faz uma leitura da coluna Traiana, colosso de mármore mandado erguer pelo imperador Traiano em Roma para contar as suas duas guerras contra a Dácia.
Penso que o friso espiralado de baixo relevos narrativos que envolve os quarenta metros de altura da coluna possa ser considerado o precursor das histórias em quadrinhos, ou até mesmo o primeiro álbum de HQ ao ar livre.
Tudo é esculpido em minúcias, obedecendo a um código. O imperador, super-herói da narrativa, marca com sua presença cada episódio. Mas, ao contrário dos super-heróis, não se distingue por qualquer roupa especial. Nem coroa leva. Distingue-se pela posição de destaque, pela atenção dos outros, pela gesticulação de quem ordena, por estar no ponto de convergência dos olhares. Os legionários romanos se diferenciam dos dácios pela couraça em tiras horizontais, e os dácios se diferenciam dos romanos pelos cabelos compridos e barbas idem.
Calvino subiu nas estruturas metálicas porque a poluição ameaçava acabar com o relato histórico. O mármore da superfície estava se tornando friável, ameaçado por qualquer chuva. E o pessoal do património histórico italiano envolveu a coluna buscando um meio químico de protege-la.
Eu não precisei subir em canto algum para fazer minha leitura, parcial embora, dessa mesma narrativa. Criança, morava em Roma com minha avó e meu tio, quando este trouxe para casa uma pasta cheia de fotos dos baixo relevos da coluna. Eram documentação, referências necessárias para ele, naquele momento figurinista de um filme sobre antigos romanos. Que farra para o meu imaginário aquelas fotos espalhadas sobre a prancheta do tio!
As tropas em marcha, com os capacetes pendurados nos ombros e panelas carregadas na ponta de varas que eu considerei como lanças. E as cenas de batalha, cheias de cadáveres no chão, os romanos sempre em posição favorecida, sempre vencedores. Lamento não ter tido a foto da cena que leio agora descrita por Calvino, o soldado romano segurando com os dentes, pelos cabelos, a cabeça cortada de um dácio. Aliás, cabeças decepadas são o que não falta de lado a lado. Dos dácios, apresentadas como troféu ao imperador Traiano, e dos romanos cravadas no alto de estacas atrás dos muros de uma cidade Dacía.
Os dácios eram bons de muro, haviam inventado o Muro Dácio, que faria grande inveja a Trump, e protegia suas cidades fortificadas. Protegia de fato, porque, após prolongado cerco, os romanos só conseguiram entrar na capital Sarmizegetusa após descobrirem e destruírem os canais que alimentavam de água a capital. Mas esse detalhe menos heroico a coluna não conta.
Conta, porém, como a irmã do rei dos dácios, Decebalo, foi separada dos filhos e mandada para Roma, parte do butim de guerra.
Onde, além do mármore da coluna Traiana, ficava a Dácia? Nas atuais Romênia e Moldávia, e em parte da Transilvânia, não a toa terra de vampiros.