Marina Manda Lembranças E la me escreve que a irmã morreu e foi enterrada na mesma cidadezinha onde, na infância, brincávamos juntas. E...
Marina Manda Lembranças
Quando meu irmão morreu deixei, de alguma forma, de ser a caçula da família, aquela família de que eu me tornava a única representante. A meu modo, também dei um passo à frente. Mas não foi isso que me importou. O que mais me doeu, além da dor da ausência, foi perder o interlocutor das minhas lembranças mais remotas.
Quando ele e eu conversávamos, às vezes até em italiano, não havia necessidade de descrições, de narrativas. Um nome ou uma palavra eram suficientes para evocar nos dois as mesmas imagens. Não como se diante do mesmo filme, pois cada um tinha o seu. Mas como se, uma vez mais, nos debruçássemos sobre nossa realidade comum.
Não havia palavras soltas. Cada palavra, cada frase, trazia mochila cheia. E a penumbra de uma casa, os pés gelados dentro das botinhas de neve, uma transparência de mar, um medo, uma conquista não precisavam nem ser evocados, extraídos da mochila. Bastava saber que o outro tinha o catálogo completo.
Agora, se eu disser o nome da minha mãe para minhas filhas, é só o nome da avó que não conheceram, um nome como legenda de um retrato. Meu irmão levou consigo a última pessoa que sabia, comigo, o rosto da mãe.
O amor, nisso, pouco ajuda. Percebo com meu marido. Das tantas vezes que me contou a Juiz de Fora da sua infância, das vezes em que fomos a Juiz de Fora e ele me mostrou a nova rua aberta onde havia sido seu Grupo Escolar, só vi a cidade moderna que conheço e, nela, duas crianças de pelerine varando a neblina. Quando a irmã dele vem, entretanto, a conversa se faz mais econômica e se ilumina, enquanto os dois voltam a andar de mãos dadas no frio da manhã, rumo às aulas.
Recordações partilhadas são uma necessidade.
Um dia, andando em Ipanema, Affonso encontrou um velho assessor de Roberto Marinho, seu conhecido. Pararam, conversaram. E falando de achaques e de idade, o senhor disse que o pior da velhice era não ter mais ninguém com quem manter diálogos cúmplices a respeito do passado. E contou sua alegria por ter estado, dias antes, com um advogado que passava dos 90: “Com ele, finalmente, pude conversar sobre a década de 20 !”.
Nosso passado não passa, é um pretérito que mantemos vivo a poder de lembranças.
A irmã da minha amiga morreu e foi enterrada na tumba da família, a pouca distância da casa onde brincávamos. Não tenho tumba de família, e estou muito distante das terras onde brinquei. Há tempos não vou a enterros, meus amigos estão preferindo a cremação. Parece mais ecológico, mais moderno, embora estejamos apenas deixando espaço para edifícios e viadutos. As tumbas eram outra maneira de manter diálogo com o passado.
É o que diz Thomas W. Laqueur, historiador americano e professor de Berkeley, em seu livro “O trabalho dos mortos”. E diz mais, que os mortos, ao trazerem a obrigação dos rituais funerários, são um elemento civilizatório importante há 40.000 anos. Agora posto em risco pela prática da cremação, que tira a sacralidade da morte e nos devolve à frase final de Diogénes: “Quando eu morrer, entreguem-me aos cães. Já estou acostumado”.