Marina Manda Lembranças O nyx Lorenzoni que me perdoe, mas quando corri o risco de morrer por um tiro acidental o liquidificador ainda n...
Marina Manda Lembranças
Meu pai havia sido combatente voluntário em três guerras anteriores. A primeira, quando muito jovem, sob o comando do poeta Gabriele d’Annunzio, outras duas na África, as guerras coloniais. Tinha, portanto, grande intimidade com armas. E, naqueles tempos difíceis, guardava uma pistola na gaveta da sua mesinha de cabeceira. Um dia, meu irmão Arduino, abriu a gaveta.
Era tentação demais para um menino de oito anos, rodeado de guerra por todos os lados, ouvindo constantemente relatos de batalhas, enfrentamentos, tiros. Arduino pegou a pistola.
Não se pega uma arma só para olhar, uma arma demanda ação. Meu irmão voltou-se para mim, que o havia acompanhado ao quarto de nossos pais, e apontando a pistola disse a frase ritual:” Mãos ao alto! Ou eu atiro!”.
Acho que nem tive medo, sabia que estávamos brincando. Levantei os braços porque obedecer também fazia parte da brincadeira.
Mas meu pai, em outro cômodo, ouviu a frase exclamada em voz de comando. E sabia, ele sim sabia, que a pistola estava carregada. Entrou no quarto. A aparição dele foi suficiente para Arduino abaixar a mão armada, ciente de ter rompido uma interdição.
Meu pai recolheu a pistola, deitou-a sobre o mármore da mesinha de cabeceira. Depois, lentamente, muito lentamente, tirou o cinto. Lembro claramente meu sentimento de ódio e minha consciência da injustiça. Embora pense agora que a surra pode não ter sido um castigo e sim uma forma de impedir que o fato se repetisse, naquele momento pedi, em lágrimas, a meu pai para parar de bater em Arduino.
Penso nesse episódio e lembro de outro que o antecedeu. Quando, movidos pela guerra, saímos da costa Adriática rumo a Como, Arduino foi com meu pai de carro - carro a gasogênio porque há muito não havia gasolina disponível para os civis. E o tempo todo da viagem, fazendo com a mão o gesto tão caro ao nosso novo presidente, abatia animais e pessoas, dizendo “bang-bang!!” em tom de vitória.
A agressividade não era dele. Quem conheceu Arduino, ator de tantos filmes e mergulhador, sabe disso. Era uma agressividade incutida pelas circunstâncias, pelos soldados que víamos passar de trem a caminho do front, pelas conversas, pelo que ouvíamos no rádio ou víamos no noticiário do cinema, pelo clima de patriotismo heroico imposto pelo fascismo, por toda a sociedade ao nosso redor. Ser homem, naquele momento, era ter uma arma na mão. E usá-la.
Agora, os meninos brasileiros nas comunidades, nos ambientes rurais ou nas cidades infestadas de assaltantes, também podem pensar que ser um homem não é só vestir-se de azul, ser príncipe, mas é ter uma arma não mão. E usá-la.
Finda a guerra, atravessado o pós-guerra em que os exércitos de ocupação andavam pelas ruas, chegou afinal a bonança. E, com ela, o liquidificador.
Tomei muitas vitaminas que meu tio preparava com seu novo brinquedo. Nem ele, nem eu, cortamos os dedos nas lâminas. E ninguém, rigorosamente ninguém, apontou um liquidificador na minha direção, exclamando: “Mãos ao alto! Ou eu atiro!