Marina Manda Lembranças Q uando vou a minha casa de montanha, passo por uma pedreira. Faz mais de 40 anos que passo por ela. E a vi p...
Marina Manda Lembranças
Pensei nisso ao longo desses dias, diante das infindáveis imagens de minas que o noticiário repete diante dos nossos olhos. Antes de Brumadinho, esse escavar sistemático e predatório não era tão visível. Minas não se escavam nos centros urbanos, ao lado do shopping ou do barzinho. E se escavam para dentro. Ou para trás, como em Belo Horizonte onde, da cidade, vemos encostas verdes sem perceber que é só fachada, pois do outro lado tudo já foi comido. Agora as minas se escavam nas nossas pupilas.
“ A natureza, isso não existe”. A frase é de Philippe Descola, mas de sentido bem diferente daquele que anda nos ameaçando ultimamente. Retoma um sentimento dos índios Achuar, da Amazônia, com quem o antropólogo foi viver nos anos 70 ao fazer seu trabalho de campo. “Cheguei impregnado da divisão entre natureza e cultura, e descobri que essa divisão não tinha nenhum sentido para os índios com quem partilhava o cotidiano”.
Hoje, Descola é catedrático de Antropologia da Natureza no College de France e continua estudando essa divisão, a partir da ideia inicial provocada nele pelos índios:” e se as plantas e os animais constituíssem, com os humanos, uma sociedade ampliada que não foi percebida como tal pelos descobridores?”
Neste calor sufocante ando precisando trocar a porta da geladeira, que não veda direito. Acho muito cômodo isso ser possível, permitindo-me tomar água gelada. E sei que para fazer a porta é preciso que haja ferro. Mas será que ferro só se pode obter dessa maneira, ferindo tão fundo terra, paisagem e pessoas?
Olho as imagens das minas e sou tomada pelo mesmo desgosto, quase sofrimento, de quando vi, na imprensa primeiro e depois nas fotos de Sebastião Salgado, a mina de Serra Pelada. “Como formigas “foi o que se disse diante daqueles homens cobertos de lama carregando cestas de minério escadas acima. Mas não tinha nada a ver com formigas, criaturas limpas, socialmente organizadíssimas, sem ganância, que jamais sofreram a “febre do ouro”.
Meu sentimento, semelhante ao dos índios Achuar, é de que os humanos não são superiores a nada e a ninguém. A natureza não nos pertence. Somos nós que pertencemos a ela. O Cogito ergo sum do Descartes nos deu uma noção descabida de superioridade. Quem disse que elefantes não “cogitam”, ou cães, ou formigas? No entanto, eles também são. Tanto quanto nós. E, tanto quanto nós, têm aquilo que pomposamente chamamos alma. Pois como é possível acreditar que um ser superior tenha feito todos os seres, e só a nós escolheu para dar este bônus, logo a nós que o usamos tão mal? Ou: como é possível acreditar que o longo processo de seleção das espécies tenha dotado apenas a nossa com tamanho privilégio?
Diante da grande pedreira da Lagoa, construíram prédios. A enorme pedreira do Jardim Botânico cobriu-se aos poucos de limo, escureceu confundindo-se com o entorno. Os ataques à natureza cicatrizam, mas levam tempo. Quanto tempo levarão Mariana e Brumadinho para tornar invisíveis suas tragédias?
Foto de Francisco Proner Ramos - Coletivo Farpa