Marina Manda Lembranças C hego na feira e o verdureiro pergunta se ouvi o tiroteio de manhã cedo. Não ouvi, meu quarto é recuado e estav...
Marina Manda Lembranças
À noite liguei o JN para ter mais detalhes, mas nada foi dito a respeito. Um tiroteio em Ipanema e a morte de um PM são rotina, não são notícia.
Tem sido difícil conviver com o Brasil nessa enfiada de tragédias e descasos. Ajudo-me, paradoxalmente, lendo um livro feroz. “Maria Bonita, sexo, violência e mulheres no cangaço”, de Adriana Negreiros, me mostra vícios antigos enraizados no país, que explicam em parte o quadro atual.
Feminicidio, por exemplo, e estupro. Novidade é só a atenção que agora se lhes dá, mas sempre foram prática constante. E não apenas dos cangaceiros.
Quanto Otília foi presa numa fazenda da Bahia, ela que aos quinze anos havia sido levada para o cangaço contra a sua vontade, todas as noites era retirada da cela e violentada por quantos soldados houvesse na cadeia de Jeremoabo. Estupro coletivo era tão comum que tinha até nome, “gera”, talvez corruptela de “geral”. Prerrogativa do chefe era não fazer fila. O cabo Roseno, indo à fazenda de uma viúva que costumava dar asilo a cangaceiros, encontrou a filha dela, de treze anos, que estuprou primeiro, deixando-a depois para os colegas; quando acabaram, estando a menina desmaiada, aproveitaram para mata-la. O médico Ranulfo Prata classificou como “peraltices insignificantes” os estupros coletivos praticados por Lampião e seus cangaceiros. Até “Maria ( Bonita )tinha uma tendência a compreender a atitude de assassinos de mulheres” e convidou o soldado Mané Véio, amigo de juventude, para juntar-se ao bando, depois dele ter assassinado a ex-mulher – que havia abandonado - por suspeitar que estivesse enrabichada por outro. Não estava.
Antigo também é o acerto entre bandidos e polícia. “Lampião negociava rifles, revólveres e munição com os próprios soldados”. Não só os vencimentos dos homens da lei eram baixos – justificativa utilizada até hoje- como o dinheiro do governo lhes chegava através de um oficial que, distraidamente, ficava com uma parte. Os policiais também informavam a Lampião nomes de quem o havia traído. Em Alagoas, o tenente Bezerra, grande amigo pessoal, desempenhava também o papel de fornecedor de armas e munições, sempre as melhores.
E, claro, Virgulino manobrou sempre com especial atenção suas relações com os poderosos, prefeitos, coronéis, deputados. Quando Padre Cícero convocou Lampião para juntar-se ao Batalhão Patriótico- nome grandioso para uma milícia de jagunços e cangaceiros- no combate à coluna Prestes, prometeu-lhe uniforme do exército, armas e a patente de capitão. O acerto não tendo dado certo porque Prestes já saíra do Ceará, o padre chamou um funcionário público e fez um documento fictício garantindo a patente.
Do mesmo modo, após a chacina de Angico, os oficiais colheram no acampamento joias, dinheiro, e duas caixas de cartas trocadas entre Lampião, coronéis e políticos influentes do Nordeste. Ninguém sabe o montante do dinheiro encontrado, mas os documentos comprometedores foram entregues aos interessados, que por eles desembolsaram alta quantia.
Tudo aquilo de que nos envergonhamos corre nas veias do país desde sempre. E enquanto louvarmos o “jeitinho brasileiro” será difícil erradicá-lo.