Marina Manda Lembranças P orque era domingo e eu queria estar bonita embora não fosse sair de casa, tirei do cabide um vestido que faz ...
Marina Manda Lembranças
É vermelho como um tapete de Tabriz e, como um tapete ganhou um ar gasto com o passar do tempo. Foi feito para mim por uma amiga em 1965, para celebrar e acolher minha primeira gravidez. E copiei o feitio, só o feitio, quando engravidei da segunda filha.
Minha amiga era uma artista plena, artista do batik. No tecido que ela trabalhou como uma tela, deitado sobre a grande mesa do seu ateliê e que só depois cortou para dar-lhe feitio, há aros esparsos, sulcos claros e duas aves, não aves românticas de asas abertas, aves pousadas, com bico de predador. A pata de uma delas segura a escrita “veritable batik”.
Passados mais de 50 anos, eu deveria tirar o vestido do closet, guarda-lo em um baú ou caixa, ou até mesmo emoldura-lo como obra de arte que é. Mas gosto de tê-lo à vista, pendurado no cabide como se acabasse de chegar, e contaminando com sua rica presença roupas tão mais modestas.
O vestido, e tantos tecidos trabalhados anteriormente, haviam custado as mãos da minha amiga. Sucessivas queimaduras da cera quente cobriram seus dedos e palmas de cicatrizes, sem impedi-la, porém, de continuar o seu fazer. Rapidez é indispensável para verter a cera fundida sobre o tecido, acompanhando desenho ou inspiração. Basta uma mínima demora ou hesitação para a cera esfriar dentro da pipeta e parar de escorrer. E o batik mais precioso é justamente aquele que mantêm a fluidez do traço. A pagar com a própria pele.
Quando a conheci, morava no alto da rua Aprazível em Santa Tereza, no último prédio, onde só moravam estrangeiros. E que aprazível era o seu apartamento, com aquela vista tão ampla e sempre um pouco enfarruscada do centro da cidade e da baía. Fui lá várias vezes. Eu era então jovem jornalista, havia comprado a máquina fotográfica de um colega, tirei dela várias fotos à noite, iluminada pelo abajur e séria, sempre séria, menos bonita, bem menos, que na realidade.
Era casada com um homem sólido, tinha dois filhos, cão, o seu trabalho no ateliê, tudo parecia estável e equilibrado.
Em algum ponto, como nas barragens de mineração, algo infiltrou-se sorrateiro e tudo ruiu. O casamento, a estabilidade, o ateliê. Os filhos acho que eram grandes, não lembro exatamente se foram viver com o pai ou ficaram com ela. Sei que ela arrumou um emprego no centro da cidade, horário integral, que não lhe permitia verter cera quente sobre tecidos. Mas continuava chique. Na hora do almoço, em vez de comer qualquer comida em qualquer restaurante barato perto do emprego, ia de táxi até o Hotel Glória e lá ficava tomando sol na piscina e mordiscando um sanduíche.
Eu era solteira, e também acabava de deixar uma vida de artista, trocada pela redação do Jornal do Brasil. A gravidez para a qual minha amiga fez o vestido era só minha, e dos meus amigos. Acabara de receber uma herança que me permitia tomar essa decisão.
Tínhamos muitos pontos em comum ela e eu, e com eles costuramos nossa amizade.
Depois ela se apaixonou por um jovem professor americano, casou com ele, teve uma filha. Mas a vida ficou difícil, e minha amiga foi embora para os Estados unidos com sua nova família.
Ainda nos escrevemos durante alguns anos. Ela, dona de casa e mãe, não tinha mais tempo para a arte. A vida continuava difícil, ela mudou várias vezes de cidade. E acabamos nos perdendo. Hoje não sei onde está, nem se ainda vive.
Tudo isso voltou no domingo, com só tirar do cabide o vestido precioso.