Marina Manda Lembranças A gora, quando aquilo que o mundo inteiro preferia considerar bizarrice de artista virou escândalo, todos cl...
Marina Manda Lembranças
Não vi horror no documentário, só tristeza. Os dois depoimentos principais são tocantes, sentidos, mais relativos a sentimentos do que a práticas sexuais. São relatos do encantamento de dois meninos alçados ao posto de favoritos do rei. Relatos do amor construído a partir da plena admiração, do deslumbramento por sentir-se íntimo, parte da vida do ídolo que todo mundo adorava e que os havia escolhido entre tantos. As carícias sexuais lhes foram apresentadas progressivamente, como parte intrínseca dessa intimidade, sem as quais ela não aconteceria.
Michael alimentava o amor dos meninos com mimos, convites para viagens e turnês, bilhetes carinhosos, declarações de reciprocidade, presentes – que menino de 7 anos não ficaria radiante ao ganhar o chapéu do astro que imitava? – compartilhamento de espaços e fotos, e até cerimônias secretas de casamento com troca de anéis.
À sua maneira doente, ele também os amava. Mais que isso, necessitava deles perto de si, não só para o sexo, mas para viver com eles a infância que lhe havia sido negada. E, num sistema contínuo de renovação, precisava trocá-los quando cresciam.
Sempre me perguntei como as pessoas não viam no rancho Neverland um sintoma de desequilíbrio. Michael o batizou a partir do livro de J. M. Barrie e, reforçando sua imagem de Peter Pan assumido, quis que tivesse um zoológico, uma roda gigante e um carrossel. Mas, debaixo da constante alegria, Peter Pan é uma personagem patética. Negar o crescimento equivale a negar a vida, e negar os deveres que cabem a um adulto é negar-se a fazer parte da sociedade. Peter Pan é prisioneiro da própria infância. E prisioneiro da solidão que ele próprio buscou.
Michael comprou o rancho para se isolar, para ter privacidade – a vida com seus meninos era muito arriscada. Não conseguiu. Logo, uma multidão tentava bisbilhotar Neverland. Não para proteger os meninos ou fazer qualquer tipo de crítica, mas para louvar aquele cenário tão parecido com um filme da Disney, tão irreal. E, quem sabe, com alguma sorte conseguir uma foto.
Os depoimentos dos dois meninos, agora homens e pais de filhos, não contêm nenhum ódio contra Michael, embora suas vidas emocionais tenham sido destroçadas pela convivência com ele. O que ouvi por trás das palavras foi uma grande interrogação que abrange tanto suas famílias que não os defenderam, quanto os verdadeiros sentimentos de Michael por eles. Transparece uma quase saudade daqueles tempos felizes, e da inocência que tudo permitia. Agora nada disso é mais possível, o passado os marcou para sempre.
No documentário, fotos e filmes mostram Michael no início da carreira, depois avançando aos poucos no cenário pop e nas cirurgias, tornando-se cada vez mais branco e mais maquilado, sumindo o nariz, queixo e maxilares crescendo, um funcionário sempre pronto a abrir o guarda chuva preto acima da sua cabeça para proteger do sol sua pele pálida.
Michael Jackson não era um alegre Peter Pan, não negava apenas o crescimento. Negava si mesmo. E a negação acabou por mata-lo.