Marina Manda Lembranças C omprei um vinho por causa do nome. E do rótulo. Nada de Pétrus ou Romanée Conti. O vinho que atraiu meu dese...
Marina Manda Lembranças
Nada de Pétrus ou Romanée Conti. O vinho que atraiu meu desejo chama-se Terra de Lobos, um Souvignon Blanc do Tejo. E no rótulo branco, a silhueta de um lobo uiva para a Lua invisível.
Nem é especialmente bom, um pouco áspero talvez, mas perfumado. Saboreando-o tentava encontrar com meu pobre paladar as características que acabava de ler, aromas de notas florais, um pouco de pêssego e damasco e um toque de lima. Prometia deixar-me em boca um gosto jovem e bastante frutado.
Mas só o que me vinha à boca era o encantamento pelos lobos. Nem sei se ainda os há no Tejo, trotando em matilhas debaixo das parreiras. Se sobrevivem, certamente são poucos e mantidos a custo. Como poucos são os da França, que os caçou sem piedade durante todo o século XIX. Hoje só restam 250, e assim mesmo porque lobos italianos sem passaporte atravessaram furtivamente a fronteira. Não sei se o número inclui os 7 lobos brancos doados pela Aústria e reintroduzidos na natureza.
Lobos são indispensáveis, como ficou provado em Yellowstone Park, nos Estados Unidos. Entre os anos 1914 e 16, cedendo à pressão dos criadores de gado, a matança de lobos foi autorizada. E os lobos desapareceram. O resultado foi pura tragédia ecológica.
Os herbívoros, agora sem predadores, se multiplicaram junto com sua fome e devoraram todo e qualquer verde. As árvores pararam de crescer, o chão ficou despido, os rios comeram suas margens nuas, outras espécies animais desapareceram. Os lobos tiveram que ser reintroduzidos.
Por sorte, os lobos não foram extintos do nosso imaginário. Perigosamente, porém, em nome do politicamente correto, tiveram unhas e dentes limados. Exemplo perfeito é o lobo de Chapeuzinho Vermelho. Não sendo possível extirpá-lo, neutralizou-se seu apetite introduzindo um caçador que o destripa. Há sempre um ser humano disposto a mostrar os dentes e uivar para a lua.
Lobos são tão indispensáveis na natureza, quanto como símbolo. Tornam visível nosso lado selvagem, nossa sexualidade, nosso poder de defesa. Eu fui criada à sombra de uma loba onipresente e maternal, aquela que tendo amamentado Rômulo e Remo tornou-se símbolo de Roma. Maternal, porém, só para os gêmeos, porque o caminho da Roma Imperial foi acarpetado com derrota e submissão de outros povos.
O lobo é justamente isso, um duplo. É humano e é lobo, quando lobisomem. É luz e escuridão. Hades, o senhor do mundo subterrâneo, veste pele de lobo, e as bruxas – antes de cavalgar vassouras, mais corretas politicamente pois ligadas a limpeza – iam para o sabat montadas em lobos. Mas Adonis, deus das artes, e Artemis, deusa da fertilidade, são filhos de uma loba. A imagem mais completa é a do mito Mongol, onde a boca escancarada do lobo permite que um maxilar toque a Terra enquanto o outro encosta no Sol.
Vejo no lobo a mesma nobreza do leão, e digo sem medo de errar que o lobo é o leão dos climas frios.
Mas a febre “anti-violência” que se alastra na literatura infantil, só consegue vê-lo como carniceiro feroz. Milagre que não tenha atacado o maravilhoso livro “Onde estão as coisas selvagens”, de Maurice Sendak, trocando o traje de lobo de Max – que o levará a tornar-se Rei das Coisas Selvagens – por um inocente pijama de algodão listrado. Infelizmente, isso ainda pode acontecer.