Marina Manda Lembranças C hove. Coisa abençoada é chuva de verão, pois generosa nos refresca, a nós que ingratos a chamamos de “mau te...
Marina Manda Lembranças
Acordei de madrugada com o grande espetáculo operístico de trovões e relâmpagos, fui checar janelas, verificar ralos de terraço, impedir inundações. Dever cumprido, voltei para a cama. Mas lamentei que o ar condicionado me impedisse de ouvir o gotejar lá fora, delícia maior é proteger-se debaixo dos lençóis enquanto a natureza esbraveja.
E porque tentava inutilmente ouvir a voz da chuva sem que a volta ao sono me fosse consentida, revi mentalmente uma imagem de publicidade da TV, gota d’água caindo em câmara lenta noutra água, e me coloquei no lugar dos pingos que despencam em inevitável rota de colisão.
O impacto mais contundente é certamente aquele contra qualquer superfície de metal. Sinos costumam estar protegidos em campanários ou debaixo de telhados, mas gosto de imaginar que emitiriam sua voz se tocados por uma ou muitas gotas. Os telhados de zinco e os aparelhos de ar condicionado fazem o que podem, mas não foram concebidos para o som, não são dotados. Certa vez, fazendo uma conferência em um ginásio de esportes, o barulho da chuva na cobertura metálica era tanto, que tivemos que interromper à espera que se aquietasse. Mas era barulho devastador, não voz.
É em silêncio, ou quase, que uma gota de chuva encontra outra água. Olho o mar e penso no quase aniquilamento, na renuncia de si, que a chuva faz chegando àquela água salgada e revolta. Não há reconhecimento, embora a origem ali esteja. A evaporação transforma, e o calor que a gerou, purifica. A água do mar tornou-se doce no trânsito até a nuvem e doce despenca. Mas só até o impacto que a obrigará a incorporar o antigo sal, a antiga identidade e novamente faz-se mar, onda, espuma, abrigo de sereia.
Distinto é o encontro da chuva com água de lago. A boa filha à casa torna, recebida pelos grandes braços do lago sempre abertos. Bem-vinda seja. Morei, na infância, em cidade lacustre à qual voltei mais tarde, mas dias de chuva traziam consigo uma melancolia especial, neblina pairando sobre a superfície que se fazia fosca. Talvez fosse o doce choro do reencontro.
Mal posso pensar no impacto de uma gota de chuva com água de rio. Ela vinha descendo em vertical desde a nuvem distante e, com só bater na correnteza, é obrigada a mudar o prumo e correr, correr, correr na horizontal, por vezes batendo-se entre pedras. Melhor cair em cachoeira e conservar por mais um tanto a verticalidade.
Quando eu era adolescente e não existiam os produtos e as promessas capilares que nos submergem atualmente, lavávamos o cabelo com água de chuva certas de que ficariam mais brilhantes. Não era tempo de poluição, mas o trânsito celeste e a filtragem das nuvens pareciam garantir uma pureza maior, alada e mágica, que se transmitiria a nossos cabelos. Hoje a chuva é ácida, contaminada, e mais prudente é enfrenta-la de guarda-chuva em punho. Ainda assim, continua sendo a benção da terra.
Só a cidade não gosta de chuva. Mas a culpa não é da chuva. É da cidade, que se expande frenética e se impermeabiliza em asfalto impedindo a água de penetrar no chão. A cidade é fábrica de enchentes, a serem postas na conta do “mau tempo”.
O campo, ao contrário, ama a chuva e a deseja, encontro casado em que choque não se vê, cada gota absorvida continuando seu percurso terra adentro para dar de beber a raízes e seres. A chuva, no campo ou no bosque, amamenta a vida.