Marina Manda Lembranças F az frio e chove muito no inverno em Pontevedra, na Galícia, e é certo que quando o mar ainda a banhava soprav...
Marina Manda Lembranças
Estou voltando de lá, viagem bem rápida, de trabalho. Mas o tempo é outro quando há tanto a se ver, quando a atenção se expande para colher o todo e os detalhes, atender as velhas amizades e as novas.
O todo, é uma cidade a serviço dos seus habitantes. Os carros não circulam no casco vello, denominação do centro histórico. Para facilitar a acessibilidade não há asfalto nem calçadas, só granito acarpetando as ruas. E no meio das placas de granito, minúsculas lâmpadas se acendem à noite sinalizando o Caminho de Santiago. Na hora do recreio, as crianças da escola transformam uma praça em seu pátio de brincar. Tudo é sereno, a violência mora longe. Essa qualidade de vida já deu à cidade muitos prêmios, entre eles o da ONU.
Parte da riqueza do todo é a sua história. Que vem desde a fundação romana e o nome Pontevedra, de raiz latina, dado a partir da ponte que os romanos construíram. Presença maior é o momento de glória da cidade, nos séculos XV e XVI, quando era porto comercial importante, centro de construção de navios – saiu dali a nau Santa Maria com que Colombo chegaria à América - e centro da pesca de sardinhas. A afluência daquele período perdura na quantidade de moradias ricas, muitas ostentando brasões advindos mais do poder econômico que de títulos de nobreza.
E os detalhes estavam por toda parte, nas margaridinhas dos gramados que à noite se fecham para dormir, nas árvores miúdas de camélia em flor, na primavera que alardeava sua chegada em dias inesperadamente ensolarados, no pão fragrante a molhar no azeite. Debruçada no alto da ponte olhei a transparência da água e o cintilar de cardumes de peixes, e aprendi que um rio, chegando ao estuário e recebendo o mar, passa a chamar-se ria. Pensei que esse feminino se justifica plenamente, pois são as fêmeas que, dadivosas, recebem.
E pensei também, vendo as criancinhas que brincavam e corriam na praça rodeada de laranjeiras cheias de laranjas maduras, que eram ambos frutos da natureza vivendo momentos diversos do seu percurso.
Quando na distante década de 60 estive pela primeira vez na Galícia, guardei na memória os gradeados de criação de vieras no mar escuro, e a parede das casas populares, aquela voltada contra o vento, sem janelas, impermeabilizada com piche e com tantas conchas de vieiras coladas na camada negra.
Desta vez, as vieiras fui vê-las no mercado central, cheio de seres ainda vivos, como devem ser e como eu já não quero come-los, siris e lagostinhas agitando as patas, vermelho sobre o mármore branco do balcão, lembrança de um sangue inexistente.
Vi uma vieira mais, preciosa acima de todas. A capela da Virgem Peregrina, cuja planta reproduz uma concha de vieira, símbolo de Santiago de Compostela.
E mais não vi porque, como disse no princípio, fui para trabalhar no Salón do Libro Infantil e Xuvenil de Potevedra, cujo convidado de honra este ano era a Lusofonia. Muito bom o trabalho, nesta cidade que tem 16 clubes de leitura e comemorava a 20º edição do Salón. Muito bom falar de leitura com quem, de fato, gosta dela. E a respeita.