Marina Manda Lembranças M eu amigo Serge Bourjea, professor francês especialista em Paul Valéry, me manda algumas fotos da China, onde...
Marina Manda Lembranças
É a mesma multidão que vejo na foto da exposição individual “Plethora”, de Julio Bittencourt, recém inaugurada no Rio. Aqui o ambiente é uma piscina mas, entre cabeças, braços e boias entrelaçados e espremidos, a água não se vê e seria possível duvidar que exista, não fossem os cabelos molhados.
O problema do futuro não são os mortos-vivos saindo da tumba, não são as invasões de extraterrestres tentaculares, não são nem as mega explosões atômicas. O problema do futuro é a multidão.
Olho a multidão da piscina e penso que muitos urinaram na água, até pela impossibilidade de alcançar a borda ou para não perder a vaga arduamente conquistada.
Olho para a multidão de Hangzhou e sei que todos estão ali para tomar um trem e que, no trem, só haverá espaço para tantos se for no aperto, no absoluto desconforto, no modo coxa-a-coxa.
Em cada multidão, nos estádios como nos shows de rock, nos hospitais como nas prisões, na verticalidade das cidades ou nas suas ruas, nos parques de diversões ou nos aeroportos, cada elemento unitário bebe e defeca e se lava e produz lixo e consome energia e se desloca e come, come, come.
A humanidade se reproduz em moto perpétuo e a ciência prolongou a vida eliminando grande parte dos predadores. Por mais cruel que seja, os predadores são agentes reguladores e, como tais, necessários.
Quando os lobos foram eliminados de Yellowstone Park, os cervos se multiplicaram de tal modo que a devastação foi absoluta. Comido todo verde e não tendo mais o que comer, os herbívoros começaram a morrer e a empestear o ar com seus cadáveres putrefeitos. Os lobos tiveram que ser reintroduzidos.
Quanto eu era criança, a vacina tríplice não existia. Eu e meu irmão tivemos todas as doenças da infância. Pouco adiante, a vida me submeteu a um teste, meningite. Fui salva pela penicilina trazida à Itália pelo exército americano e comercializada no mercado negro. Vida afora tive inúmeras pneumonias, acabei com tuberculose. Mas não era para ter morrido no terceiro ato, tossindo sangue como heroína de ópera. Era para ter morrido na infância quando a infecção me atacou as meninges.
Ainda bem que não aconteceu, porque gosto muito da vida e aproveitei bem o tempo ganho, mas em termos estatísticos sou apenas uma pessoa a mais e pessoas a mais estão complicando o futuro.
Bem que a natureza tenta reintroduzir seus lobos. Volta e meia aparece uma epidemia como a ebola, ou um vírus como o HIV. Volta e meia mosquitos passam a transmitir doenças antes insignificantes ou inexistentes. As bactérias aumentaram sua resistência aos antibióticos, e a septicemia está se tornando tão comum em hospitais que até já ganhou apelido, sepse — só no Brasil, são 670 mil por ano.
Agora o aquecimento global causa mudanças climáticas e torna normal aquilo que era emergencial. Gosto de pensar em legítima defesa. A natureza, cansada dos ataques desferidos pelo gênero humano, decidiu defender-se com suas próprias armas. É dama poderosa, cinturão de ouro em qualquer octógono. E está amparada pela lei.