Marina Manda Lembranças D e repente, me dei conta. E depois de dar-me conta me culpei por ter demorado tanto. Logo eu, uma feminist...
Marina Manda Lembranças
Domingo de manhã abri a porta, catei O Globo e, quando ia depositá-lo sobre a mesa do café, a revista ELA escorregou e caiu no chão. Como se a visse pela primeira vez, aquele título alertou os meus sentidos. E, subitamente, me pareceu um tremendo equívoco.
Por que, ela?
A revista traz grandes e pequenas reportagens de moda. Mas moda deixou, faz tempo, de ser um assunto de mulheres. É um assunto de homens e mulheres, um assunto de mercado. Um mercado poderosíssimo. Estimava-se para o ano 2017 a movimentação de US$ 2,4 trilhões, com aposta de crescimento na China e na India. E as marcas mais focadas nesses mercados são Gap e Adidas, produtoras de moda sem frufrus, esporte puro para qualquer gênero.
A revista também se ocupa de gastronomia. Mas comida era assunto de mulher quando avós trocavam receitas de bolo e mães intercambiavam receitas de strogonofe. A gastronomia mudou este panorama, colocando o fogão em outro patamar. A nova gastronomia substitui antigas receitas por criação alimentar, abraça alimentação saudável, recusa agrotóxicos e desperdícios. Agora, ser chef é profissão de alto respeito e altos salários, para homens e para mulheres.
Falamos de decoração e arquitetura? Não há nenhuma reserva de domínio feminino nestes campos. Nem são só as mulheres que escolhem a decoração das casas familiares. A produção de móveis e de cozinhas está na mão de grandes empresas, por vezes multinacionais.
Falamos de beleza? E quem, diante dos cantores pop, dos jogadores de futebol ou dos jovens moradores das periferias pode dizer que beleza é assunto só de mulher?
O último número foi todo sobre sustentabilidade, em comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente. Sustentabilidade é um dever cidadão, o Meio Ambiente é responsabilidade de todos.
A revista Elle foi fundada por um casal em 1945. O mundo acabava de sair da Segunda Guerra depois de cinco longos anos de privações e abstinência. Havia um desejo de leveza no ar, de diversão, até de desperdício depois de tanta contenção e reaproveitamento. Moda e luxo pareciam fórmula ideal para esquecer os tempos em que havia sido necessário fazer capotes com cobertores porque já não havia outros tecidos de lã.
E faltavam ainda quatro anos para Simone de Beauvoir escrever “Segundo Sexo”, abrindo as porteiras para o feminismo.
Vivemos agora o século 21. Segmentação por gêneros está totalmente out. Cartier acaba de lançar um novo modelo de alianças batizado Unisex. Muitos países já legalizaram o casamento gay e outros se preparam a fazê-lo. Na terceira onda feminista, as mulheres estão metendo o pé nas portas da sociedade, ocupando e reivindicando cada vez mais espaço. Há mulheres delegadas, astronautas, engenheiras, cientistas, chefes de empresas, e aqui no Brasil uma mulher acaba de ser nomeada reitora da Uerj, a primeira em 100 anos.
Hoje, uma revista chamada Ela parece totalmente anacrônica, desvinculada do seu tempo. É dever de uma revista ser prestadora de serviços, e não apenas cabide de anunciantes.
Bastaria trocar o título, abrir espaço para um/a analista político ou social, pautar uma reportagem de peso para cada número, dar mais consistência ao conjunto.
Demorei a me dar conta, mas do jeito que está não me passa mais pela garganta.