Marina Manda Lembranças M anhã cedo, eu indo de taxi para o aeroporto, o taxi para no sinal, e eu a vejo. Uma mulher nem magra nem gord...

Marina Manda Lembranças
Acabou de acordar e se ajeita, já de pé, recompondo-se para o dia que começa. Puxa o legging para cima, sacode pernas e cadeiras como a recuperar o prumo, puxa a blusa para baixo, acomoda os peitos no sutiã. Reparo que traz os cabelos presos num turbante enorme, o conjunto parece macio, talvez lhe tenha servido de travesseiro ao longo da noite. Antes que o sinal abra, ainda a vejo inclinar-se para recolher e dobrar o cobertor. E o taxi vai, enquanto eu levo a mulher no pensamento.
Gosto de frio, mas o inverno é feroz com quem não tem casa. Não bastam as marquises e os vãos das portas para proteger da chuva que está no ar. Embaixo delas os moradores de rua se enrolam nos cobertores ralos e úmidos, às vezes embolados com o cachorro, cabeça coberta para aproveitar o mínimo calor do hálito. E ficam.
No sol, a miséria é menos flagrante. Quem vive na rua caminha pelas calçadas entre os que têm endereço e CEP, quase confundido com eles, apenas um pouco mais sujo, mas com havaianas semelhantes. Ou fica sentado onde é possível sentar, quentando vida e pedindo dinheiro e comida a quem passa.
Mas assim que bate o frio, os que podem se calçam, meias, tênis, sapatos, botas, coturnos. Os outros, os que só têm havaianas ou nem isso tem, continuam com artelhos ao vento. A miséria se denuncia pelos pés.
Toda vez que vou ao banco, o velho banguela, sentado na calçada com as costas escoradas por uma parede repete a mesma cantilena com idêntica entonação: “Madaaamee, me dá dinheiro para um café?”. Acho que só pede a mulheres velhas que nem eu, porque a frase nunca me chegou sem aquele “madame” arrastado. Deve achar que as mais velhas tem estoque de bondade acumulado. Sei que não é bom fisionomista porque nunca lhe dei o tal café que, ao longo de anos, continua me pedindo. Mas é provável que nem olhe com atenção, a frase tendo se tornado um mantra que ele repete constantemente e que, algumas vezes, lhe traz a benção divina em forma do café solicitado ou até de uma quentinha.
No inverno, os moradores de rua tornam-se mais gregários. Ou assim parece pelo acúmulo de colchões, papelões, cobertores que tornam mais visíveis os corpos estendidos em busca de proteção. Se ando da minha casa até a praça – tenho duas à disposição- passo por inúmeros acampamentos humanos desse tipo, que no verão nem vejo, ou que no verão nem estão ali.
Se uma filha minha tivesse frio, eu iria imediatamente à loja comprar um cobertor, dois cobertores, para ela. Se a minha diarista me dissesse que tem frio, eu faria o mesmo. Então porque não compro um cobertor, dois cobertores, para os moradores de rua? Deve ser pela distância.
Não sei como vive sua realidade um morador de rua, não sei como a sente, qual sua rede de pertencimento. Reparei na mulher do canteiro porque ela tinha atitudes semelhantes às minhas, - acordar, se arrumar, organizar o espaço- transferidas para o ar livre. E porque ela estava em um canteiro, protegida por uma mureta e não ao pleno desamparo. Reparei nela porque, por instantes, diminuiu a distância entre a sua vida e a minha. Distância que nenhuma das duas construiu e que em ambas dói.
Foto: Maneco Magnesio.