Marina Manda Lembranças A velhice é árvore de muitos galhos que, se por um lado está perdendo as folhas, por outro abriga ninhos de me...
Marina Manda Lembranças
Não faz muito, passou um filme francês sobre a amizade de Cezanne e Zola. Fui ao cinema sabendo que não era para ver o filme, e sim para reviver um tempo de vida.
Amei a pintura de Cezanne intensamente desde quando, na adolescência, comecei a estudar pintura. Comprava livrinhos de banca, baratos e infiéis nas cores, para aproximar-me dos quadros que não podia ver – ainda não era tempo de Google. E pintava naturezas mortas de maçãs e panos brancos.
Corta!
Já sou casada e sento com marido e filhas no bar Les Deux Garçons, no Cours Mirabeau, avenida principal de Aix em Provence onde estamos morando durante um semestre, em atendimento a convite da universidade local para que Affonso dê um curso de literatura brasileira. Aix é a cidade de Cezanne e Zola, e este bar, como o nome indica, é o mesmo em que os dois amigos sentavam para tomar um chá ou um pastis, falar de vida e discutir arte e literatura.
O bar nem se vê no filme, cuja diretora preferiu trabalhar com planos fechados.
Corta!
No apartamento alugado e decorado com móveis de segunda mão, visto o jogging e calço os tênis. Estamos indo correr na Route Cezanne, e precisamos tomar o carro porque é longe, fora da cidade. Não é qualquer lugar, não é qualquer corrida. Mantendo passo e respiração olhos os troncos que se sucedem e vejo as árvores pintadas pelo mestre. Toda a paisagem circundante e na distância está impregnada de suas cores. Ou assim a vejo.
Corta!
E chega o dia em que visitamos a casa/atelier de Cezanne. Mantida exatamente como era, tornou-se museu. Um museu vivo, porque as maçãs estão ali na mesma composição de um dos quadros, frescas como se o dono daquele espaço fosse novamente pintá-las. Há mais maçãs na beira da janela, não tão frescas, e a curadora nos explica que nada se joga fora, quando as maçãs mudam de cor e perdem a rigidez são postas no peitoril para, a seu tempo, morrerem. Vejo ao redor os elementos das naturezas mortas que tanto admirei nos livrinhos baratos.
As paredes são de um tom cinza azulado claro, responsável pelas sombras azuis de tantas pinturas do mestre. E ele abriu uma espécie de janela altíssima e com pouco mais de 25 centímetros de largura, para poder retirar do atelier as grandes telas.
Corta!
Entro, no Rio, no consultório de um médico. Na parede, emoldurado, me recebe o cartaz da mega exposição de Cezanne no Grand Palais, que coincidiu com uma minha estadia em Paris. E me revejo em meio à multidão que lota as salas, indo de um a outro quadro, reverente como se sozinha.
Corta!
Nada disso estava no filme, nenhuma paisagem, nenhuma natureza morta, nenhuma rua de Aix. Mas foi isso que eu vi entre as cenas e por cima das cenas destinadas a retratar a amizade e a ruptura dos dois rapazes que frequentavam aquele bar. Sou árvore de muitos galhos, já perdendo boa parte das folhas. Mas nos muitos ninhos abrigo meus aplicativos.