Marina Manda Lembranças F ui etíope até os trinta e tal. Agora, passados trinta anos de guerra e um trabalhoso acordo de paz, acho que...
Marina Manda Lembranças
Injera é o que se via na tela. Comida cotidiana dos meus dois países, essa panqueca gigante feita de um grão local cobre o prato sobre o qual se depositam montinhos de ensopado, legumes, iguarias, molhos, tudo muito temperado e muitíssimo picante. Lembro meu pai dizendo como o único recurso para abater a ardência fosse comer ovo duro.
Neste ponto preciso explicar a situação do meu pertencimento, embora o tenha explicado em outras oportunidades. Quando nasci na Eritréia, colônia italiana desde 1885, a Itália havia conquistado - ou invadido- há um ano a Etiópia, fundindo os dois países e restaurando o antiguíssimo império da Abissínia. Desde o início me considerei e era considerada em família, etíope.
Até outubro de 1985. Em Washington para um congresso de literatura, levei uma carraspana de um taxista que havia me perguntado de onde eu era. Ao dizer-me brasileira, italiana e etíope, uma luz se acendeu em sua atenção. Perguntou de que cidade da Etiópia, e quando respondi Asmara, veio a bronca. Os trinta anos de guerra pela independência da Eritréia estavam no auge, Asmara era a capital daquele país, e ele um refugiado eritreu. Sua reação me cobriu de vergonha.
Naquele momento, rasguei um passaporte imaginário e assumi outro.
Passaram-se anos. E novamente em viagem, estava visitando Israel exatamente quando chegou mais um avião carregado de Beta Israel, como eles se chamam, ou falashas, como são chamados, os judeus etíopes.
Sabendo das minhas origens, os organizadores da visita me levaram para ver o galpão onde estavam temporariamente instalados, e as montanhas de doações que haviam sido enviadas para eles. Depois me levaram a uma escola, onde judeus etíopes chegados anteriormente estudavam hebraico. Tive desejo de abraçar aquelas mulheres, dizer que eu também era etíope e também era transplantada, que conhecia seu sentimento. Mas eu não estava envolta no pano branco típico, como todas elas, minha pele não era escura como a delas, e eu não falava sua língua. Temi que me vissem como a branca que sou, colonizadora, que me rechaçassem. Contive minha emoção e meu abraço.
Imagino fosse descendente desses falashas a bela etíope dona do restaurante que a televisão trouxe para dentro da minha casa. Esgalga como são os da sua terra, explicava a comida com gestos delicados, afirmava-se judia, e disse que as pessoas frequentam seu restaurante atraídas, sim, pelo paladar, mas também para vê-la dançar, porque os etíopes nascem dançarinos e sempre dançam quando em companhia. Eu também teria gostado de vê-la dançar. Mas isso não aconteceu, o programa voltou para Israel e eu saí da sala.
Quando eu era pouco mais que um bebê, minha família descia de Asmara pela longa estrada serpentina para ir tomar banho de mar no porto de Masawa.
Faz pouco tempo, um amigo querido usou meu computador para ver horários de voo entre Adis Abeba, Asmara, Masawa. E agora, como um fantasma do passado, todos os dias abre-se uma minúscula janela no alto da minha tela, informando-me os horários de hoje e de amanhã que me levariam a essas três cidades onde minha vida começou.
Imagem: Bandeira da Eritreia com a bandeira da Etiópia em um grunge rachou a parede - Foto de Ellandar