Marina Manda Lembranças H á sempre alguém deixando a casa em que viveu e buscando novo pouso. A construção do ninho humano é complicada...
Marina Manda Lembranças
A casa fica, como um pet abandonado. A vida que a aquecia por dentro, foi-se embora. A casa sente frio.
Penso nisso toda vez que vejo um cartaz de “vende-se” preso em janela ou porta. Não sem emoção. E agora, com tantas casas à venda devido ao mau momento e tão poucos compradores, minha empatia está sendo convocada com frequência.
Olho os vidros sujos e penso que antes havia quem os limpasse, o cotidiano atrás deles estava protegido por cortinas, e havia um cotidiano que justificava a janela. Só o cotidiano dá razão de ser a uma casa, nem que ela seja de quatro paredes.
Quando eu ia a minha casa de montanha, passava por outra, de fazenda, no meio de um pasto, abandonada. Abandonada pelos donos e já sem teto, mas adotada por vacas. Eu as olhava com ternura, a mesma ternura que talvez sentia a casa por suas nova habitantes. Era doce ver a cabeça de chifres surgindo da janela da cozinha sem fogão que os azulejos na parede denunciavam, enquanto outras três habitavam a sala mansamente. Todos ali se protegiam, as vacas se abrigavam do vento, as paredes prestes a desabar sentiam-se amparadas pelos corpos castanhos. E eu levava estrada afora aquela visão de irmandade.
Numa casa abandonada, o teto é o primeiro a se desfazer. A ventania leva uma ou outra telha, a chuva abre caminho, os cupins se servem das vigas e, sem ninguém que o cuide, o telhado se apronta para desabar. As casas sem telhado são as que mais me doem. Em geral, justamente porque tinham telhado, são bem construídas. Recentemente passei por uma, em outra cidade que não a minha, e o pé de limão galego que crescia atrás do muro estava carregado de frutos que ninguém colhia. Duplo desperdício, da casa boa e dos limões com que se pode fazer geleia deliciosa.
Quando o momento é mau, não se deixa a casa por outra melhor. Às vezes nem se deixa a casa por outra. De onde havia retratos na parede sai-se como se em fuga, premidos por necessidade ou por perigo, levando o sofrimento na magra mudança.
Tive tantas casas que nem paro para contar. Não esqueci nenhuma. Às vezes, quando o sono demora a chegar, percorro os aposentos de uma ou outra, ouço o ranger de um piso de taboas, um certo tilintar, o cheiro tão familiar que me esperava como um abraço ao abrir da porta, a luz que ao entardecer vinha da praça. Morei também em hotéis, que considero como casas. Em alguns, de estadias mais longas, apunhamos a nossa marca, num deles, pequeno, alugamos o andar inteiro.
Todas, em algum momento, tive que deixar. Em algumas, era criança sem direito a voto, tendo que acompanhar a decisão dos adultos. Em outras, adolescente, ainda não traçava meus próprios planos. Depois, jovem, estava toda voltada para o futuro, para o próximo capítulo, para a próxima casa. Não sofri, mas não abri mão de nenhuma delas. Estão todas inscritas debaixo da pele, tatuagens que ninguém vê, só eu, espaços biográficos que conservo nos olhos e a qualquer momento revejo.