Marina Manda Lembranças E ntrou no elevador com os pais, numa parada intermediária. Calculei que tivesse 3 anos, quase chegando aos 4. ...
Marina Manda Lembranças
- Que bonita a sua bolsa! – eu disse para ela, sabendo que estava de total acordo.
Nem olhou para mim diretamente, olhou para a bolsa que segurava pela alça, e a abriu. Estava me mostrando, de forma transversal, a utilidade que pode ter uma bolsa. Tirou de dentro dela um cachorro, não um cão estilizado, mas um cachorro pequeno erguido sobre as quatro patas, de plástico rígido e marrom, realista, provavelmente elemento de algum jogo.
- Um cachorro dentro de um gato?!- exclamei eu – Gatos não gostam de cachorros. Teu gato não deve estar gostando nada disso.
Ela botou o cachorro de volta na bolsa.
- Miauuu!- fiz eu, externando o desagrado do gato.
Ela revirou a bolsa nas mãos, como se procurasse alguma coisa.
-Minha bolsa não tem som - disse quase desalentada. Revirou mais, e acrescentou – Também, dura só um minuto e a pilha acaba.
A bolsa sem som acabava de perder parte do seu valor. O elevador chegou ao térreo, saímos todos e ela se foi, ladeada por pai e mãe.
Os dois, certamente, não haviam notado nada de estranho, cuidando apenas do bom sentimento despertado pelo fato de uma senhora se encantar por sua filha. Mas eu ia mastigando observações que passavam por cima do encantamento.
A menininha, cujo nome nem cheguei a perguntar, não havia dito “minha bolsa não fala” ou “não mia”. A bolsa, apesar da pelúcia, do feitio, dos olhos, nariz e bigodes bordados, não equivalia para ela a um gato. Equivalia a um aparelho de som.
Certamente não tinha gato, não estava familiarizada com gatos. Mas em sua casa havia vários aparelhos. Nem falo dos de tomada, como liquidificador, micro-ondas, geladeira, máquina de lavar. Falo dos de som, dos que falam. Duvido tivesse rádio, os pais dela sendo jovens não fariam apelo para objeto tão pré-histórico. Celular, sim, tinha mais de um ao seu redor. E televisão. E é provável que em algum momento em que ela pedia para ver desenhos no celular, a mãe ou o pai, considerando que era hora de fazer outra coisa, tenham dito para simplificar que “a pilha acabou”.
Uma coisa é certa, a menina não sabia nada de animais - ignorava até que cachorros e gatos são inimigos históricos – mas sabia bem de aparelhos e suas fontes de energia.
Devido ao politicamente correto, nem deve ter cantado “ Atirei o Pau No Gato”, senão teria identificado o meu miado com o “berrô que o gato deu!”
Não tiro desse episódio conclusão alguma. Embora sejamos o tempo todo atingidos por conclusões, não são ginásticas mentais fáceis de alcançar e não podem ser imediatistas. Penso apenas no deslizamento de valores. Se ontem era importante que os primeiros conhecimentos fossem da vida, na qual o gato se insere, hoje o conhecimento que chega primeiro é o dos equipamentos, cuja utilização - e consequente necessidade - se expandiu de forma tão tentacular a ponto de confundir-se com a vida em si.
É provável que a menininha do elevador venha a ter um pet. Mas o que primeiro se imprimiu nela como necessidade vital foi o som emitido por um equipamento que, em algum momento, precisa recarregar sua energia.