Marina Manda Lembranças M inha filha Fabiana, tradutora excepcional, me diz que, face aos avanços tecnológicos, prevê ficar sem trabal...
Marina Manda Lembranças
É para lá que vai a Inteligência Artificial (IA), expulsão e desemprego de muitos, em favor do mercado. É o que dizem o economista brasileiro João Moraes Abreu e a cientista russa em computação Katya Klinova em tese de mestrado apresentada na Universidade de Harvard. E dizem mais, que o Brasil, onde os desempregados já ultrapassam grandemente as previsões, precisa se preparar para encarar muitos mais.
Além dos motoristas, dos auxiliares de escritório, de vendedores de loja e de porta-a-porta, profissões mais ameaçadas, os escritores também vão entrar na dança. Vários robôs, softwares e aplicativos estão sendo aprimorados para serem seu par bailarino.
Há os que fazem poesia, os que ajudam na construção das personagens, os que prometem acabar com o bloqueio criativo, os que conversam com o autor oferecendo a lista de soluções possíveis para uma situação empacada, e até um em que o autor escreve uma frase e o programa sugere possíveis continuações a partir de textos já escritos. Será como ter um ghost-writer personal, um co-autor, um esqueleto sobressalente disponível no armário.
Tudo isso é perfeitamente válido para a produção de livros. Muitos autores já trabalham de maneira similar. Embora artesanal e levando mais tempo, a colcha de retalhos - ou de “inspirações”- tem produzido alguns best-sellers famosos. E a mais moderna fan fiction segue pelo mesmo trilho, embora com raízes propositadamente explicitadas.
Mas literatura é outra coisa.
Um dos robôs permite “ criar um assassino, conversar com ele para saber como mata as suas vítimas.” Pode ser útil para fazer um livro de suspense igual a tantos, mas Truman Capote não precisou desse suporte para escrever “A Sangue Frio”. Levou sete anos, é verdade, mas seu livro fundou o New Journalism. Não teria sido um livro determinante se ele tivesse conversado com uma máquina, em vez de viajar para Holcomb, no Kansas, um mês depois do assassinato da família Clutter, e conversado, olho no olho, com parentes dos assassinos e das vítimas. Não teria marcado época se o autor não acompanhasse o processo, não se relacionasse – diz-se que até amorosamente- com um dos assassinos. E máquina nenhuma poderia substituir o seu olhar quando assistiu ao enforcamento dos dois.
O robô tampouco teria facilitado a vida de Dostoievski ao escrever “Crime e Castigo”. Os golpes de machado com que o protagonista Raskolnikov mata a velha agiota e sua irmã não são o mais importante do romance. Armas bem mais afiadas são a consciência e o filosofar do assassino.
Literatura não se faz com soluções. Se faz com vísceras.
Nada contra máquinas. As há até para caçar plágios, não só para cometê-los. Mas quem se beneficiará delas são os semi-escritores, ou até os não-escritores.
A vantagem é que o mercado livreiro não é feito só de literatura. Publica-se uma quantidade enorme de livros, só livros – não confundir o conteúdo com o suporte - para cada clarão literário. Estes continuarão a brilhar com sua raridade. Enquanto o mercado aproveitará as máquinas.