Marina Manda Lembranças A gente sabe que está chegando à decrepitude quando começa a conversar com estátuas e logradouros públicos, não...
Marina Manda Lembranças
Posso sentar ao lado da estátua de Drummond naquele banco da Avenida Atlântica, e conversar com ele como naquele dia em que veio aqui em casa deixar um livro para mim e meu marido, ou na tarde em que nos cruzamos numa rua do bairro, ele certamente indo visitar a amante. Mas é certo que a estátua não me entregaria um envelopinho azul como tantas vezes o cronista Carlos me entregou na redação do Caderno B do jornal do Brasil, contendo a crônica do dia seguinte, sem rasuras e assinada a mão.
Conheci o Galeão, ou melhor, o Antônio Carlos Jobim. Que bonito era Tom quando jovem, com aquele cabelo liso caindo atravessado na testa. Meu primeiro apartamento era diante da casa dele, ainda casado com Thereza. Saía sempre música daquela casa. Em certos dias um conjunto vocal renascentista ensaiava, e o som entrava pela minha janela como um presente. Depois de casada, morei diante da outra casa dele. Soube que havia sido dele, por uma placa. Foi um hostel cor de maravilha, derrubado este ano sem qualquer respeito ao morador ilustre. Com a estátua de Tom, na boca do Arpoador, não converso. O pobrezinho fica ali com seu violão, prisioneiro do bronze para ser parceiro de fotos, e me dá pena.
Sempre chamo a rua Vinícius de Moraes, de Montenegro, como se chamava quando fui assistir ao show de Vinícius e Nara numa boate perto do Lido, em Copacabana, ela em brilhante começo de carreira, ele recém saído do Itamaraty. E continuava se chamando assim quando, agregada como ouvinte a um grupo de jornalistas mais velhos, fomos à casa do Vinícius entrevista-lo. Lembro que ele sentou-se na escada, a camisa aberta sobre a barriga volumosa e quando um dos entrevistadores perguntou qual era a coisa mais triste do mundo, respondeu, para minha completa indignação: “A coisa mais triste do mundo é mulher feia na janela”.
Semana passada fiz palestra em Caxias, e à minha frente estava o teatro Raul Cortez. Que homem elegante, que finíssima pessoa, e que belo ator era Raul Cortez. Comoveu-me reencontrá-lo ali, ambos trabalhando no que gostamos de fazer, ele ainda motivando atores.
Que prazer, quando vou a Belo Horizonte, passar debaixo de tantos viadutos que foram meus amigos. Tive menos intimidade com Paulo Mendes Campos, o Paulinho do quarteto mineiro. Mas fui muito amiga de Fernando, que esteve em minha casa várias vezes, a última tentando nos convencer a comprar um processador de texto, segundo ele mais prático que o recém nascido computador. Fomos ao seu apartamento ver em pessoa a maravilha. Um apartamento pequeno e organizado, como uma cápsula espacial. Do lado de fora da janela a garrafinha de água com açúcar para alimentar um beija-flor, visita constante. Também fui muito amiga de Otto, estivemos juntos em Washington, em Diamantina, em tantos eventos literários, trabalhamos juntos no Jornal do Brasil, fui a tantos jantares na sua casa. E tentei me tratar com Helio, psicanalista. Mas ele acabava de ter um infarto, estava reduzindo o número de clientes. Nos reencontramos depois, quando ele casou com minha amiga Lya Luft.
Nunca fui ao Leme, conversar com a estátua de Clarice Lispector. Converso com os retratos dela, nas capas dos livros, nas vitrinas das livrarias, nas notícias que dão conta do seu avanço internacional na literatura. Com a estátua de Ulisses, seu cão, não conversaria. Sempre foi um cão antipático.