Eu vi Borges atrás de um vidro, como um peixe no aquário. Sim, eu vi Jorge Luis Borges, um dos grandes da literatura do século XX, prepara...

Eu vi Borges atrás de um vidro, como um peixe no aquário. Sim, eu vi Jorge Luis Borges, um dos grandes da literatura do século XX, preparando-se para uma tarde de autógrafos quando a livraria ainda estava vazia. Ou, pelo menos, creio que estivesse preparando-se, porque era visível seu modo espera, sentado atrás de uma mesa grande e sólida, quase uma trincheira, colocada diante de uma vitrina. A vitrina dava para o corredor de um centro comercial, justamente aquele pelo qual, uma tarde, eu e Affonso em visita de trabalho a Buenos Aires, passamos.
Penso agora que havia sido colocado ali, de costas para o amplo espaço da livraria, para não ser incomodado por eventuais frequentadores que, ao vê-lo, não deixariam de se aproximar para externar admiração, emoção, falar da honra que era encontrá-lo. E pedir um autógrafo (o delirante tempo das fotos ainda estava por vir).
Certamente era esta a situação, porque olhando à distância lembro que não havia nada sobre o tampo da mesa, nem pilha de livros, nem flores, nem mesmo um copo de água.
Ele estava só, e olhava para a frente. Olhava para a frente sem ver, quase cego que era.
Assim nos deparamos com ele, sem acreditar no que víamos. Não havia ninguém ao seu lado. Ninguém para proteger aquele homem tão famoso e, em função da falta de visão, tão frágil.
Demos alguns passos adiante. Voltamos. Queríamos ter certeza. Não olhamos para ele de frente, olhamos de lado, na costura da vitrina com a parede, evitando constrangê-lo. Ainda durante alguns minutos hesitamos, desejando entrar na livraria, falar com ele, dizer que éramos dois escritores brasileiros, que conhecíamos a fundo sua obra e o admirávamos. Depois fomos embora sem entrar, sem perturbá-lo, sem submetê-lo, e a nós, a esta cena tão íntima e tão distante. Mas fomos como gatunos, levando debaixo do manto invisível a visão que a passagem naquele corredor havia nos dado de presente.
Talvez Borges nem soubesse que estava diante de um vidro, exposto. Vidro é anteparo que só permite a passagem do olhar. Para quem não vê, que sentido de inutilidade tem o vidro? Outra coisa é a taça que se leva aos lábios, que se apalpa, e cujo tilintar chega ao ouvido e se transmite aos sentidos. Mas não havia taça ou copo ao alcance do escritor, mais que tantos, sensível.
Naquela livraria que era puro momento suspenso entre uma atividade ainda por começar e o nada que a antecedia, sentado à mesa que adiante seria trocada por outra ou mudada de lugar, Borges estava num espaço só seu. O olhar conduz à distração. Uma pessoa que passa, um cão, uma leitura, a planta com folha nova, as cores, o pedalar na bicicleta, tudo atrai o olhar e fragmenta o pensamento. Quem não vê tem duas escolhas: ou presta uma atenção de bode na canoa para captar tudo o que o olhar não colhe, ou divaga em névoa, atrás do fio complexo e enovelado do pensamento.
Os labirintos tão caros a Borges, e as bibliotecas, nos dizem que sua predileção era o lado de dentro, o conteúdo, onde tantas vezes a alma humana se confunde e, acreditando fazer a boa escolha, toma o rumo equivocado que não a levará aonde quer chegar.
Gosto de acreditar que flagrei Borges, fisicamente parado atrás daquela mesa, percorrendo seu próprio labirinto, tão semelhante àqueles em que tantas vezes o acompanhei nas páginas dos seus livros.