Marina Manda Lembranças E m algum momento peguei na estante um livro de Pablo Neruda e o depositei sobre a mesa de centro na sala de...
Marina Manda Lembranças
Vou logo dizendo, a poesia de Neruda não é das minhas favoritas. Sobretudo não gosto dos famosos poemas de amor. Acho muito derramados, emplumados, excessivos. E, eventualmente, insinceros. Tenho a sensação incômoda de ler poemas não endereçados à amada, mas ao amor, Cupido em pessoa, embora disfarçado de mulher. E não me sinto obrigada a gostar deles só porque todo mundo gosta e por ter o autor ganho o Nobel.
Mas o livro em questão não é de poesia, é de prosa. E que prosa colorida, que frescor de prosa tem Neruda!
“Pelas praias do mundo”, edição da Bertrand Brasil, reúne textos escritos em épocas diferentes, com diferentes finalidades - alguns para jornais e revistas, outros para conferências, encontros políticos ou apenas registros de memória. E o melhor, textos escritos em diversos lugares do mundo.
Neruda começou a viajar muito jovem, com pouco mais de vinte anos, diplomata enviado para o Oriente. Tinha pouco a fazer, pouco a receber no fim do mês, tarefa doméstica nenhuma, e uma solidão esmagadora e proveitosa para o ofício da escrita.
Com que riqueza de olhar e pensamento nos leva consigo para a Tailândia, a Indochina, o Ceilão, o Iucatán, a California ou seu querido, seu sempre amado Chile.
“Para escrever me fizeram falta pelo mundo as goteiras. As goteiras foram o piano da minha infância(...) o grande piano das goteiras durava o inverno todo. (...)Minha mãe espalhava então pela casa suas panelas, bacias, jarros para leite( ...) Cada um deles produzia uma nota distinta(....) e suas notas acompanharam-me onde quer que eu tenha vivido, caindo sobre meu coração e sobre a minha poesia.”
A verdade é que nada lhe fez falta para escrever.
De que forma ensolarada fala de Djibuti, mínimo país a beira mar entre a Eritreia – país onde nasci- e a Etiópia! “Os primeiros salmões budistas passam indiferentes pelas últimas trutas sarracenas(...)Djibuti me pertence. Conquistei-a, passeando sob o seu sol nas horas temíveis: o meio-dia, a sesta, cujas patadas de fogo partiram a vida de Arthur Rimbaud, nessa hora em que os camelos diminuem suas corcovas e afastam seus pequenos olhos do lado onde está o deserto”.
Como um pintor descreve as cores da Birmânia: "o colorido apenas designa os trajes. O homem se envolve em saias multicores e leva na cabeça um lenço rosado. Veste uma pequena jaqueta escura, de estilo chinês, sem lapelas, ou seja, franca: da cintura para cima ele é um toureiro mongol. Mas sua saia de lunghi é reluzente e extraordinária ao extremo, é carmesim ou cor de caneta ou azul temperado com cinabre. Nas ruas de Mandalay, nas avenidas, nos bazares de Rangum essas tintas deslumbrantes estão em perpétua ebulição."
Difícil lhe é “deixar Siam, perder para sempre a etérea, murmurante noite de Bancoc, o sonho de seus mil canais cobertos de embarcações, seus lugares altos, cada um com sua gota de mel, sua ruína khmer em escala monumental de grandeza, seu corpo de bailarina em estado de graça.”
E porque é sempre difícil deixar a beleza, tenho deixado queimar comidas no forno e evaporar na fervura a água da pasta.