Marina Manda Lembranças S erá possível que só eu me arrepie olhando pela janela do meu quarto de hotel em São Paulo, no 24º andar, e v...
Marina Manda Lembranças
Devo acreditar que só eu sinto meus tímpanos feridos com a voz da cidade que entra pela janela do meu quarto de hotel em Belo Horizonte, uivo compacto de tantas vozes, tantas buzinas, tantos motores, tantos pneus sob o asfalto, uivo mais assustador do que o das feras, porque mais que o das feras nos ameaçam?
Devo crer que só eu estremeço diante da foto no jornal de segunda-feira mostrando, acima da legenda orgulhosa pelo sucesso do domingo de sol, uma barraca encostada na outra e encostada na outra e encostada... só barracas cobrindo toda a praia de Ipanema, aquela praia que frequentei quando havia tanto espaço entre uma barraca e outra, tanto espaço ao sol para o corpo dos humanos?
Não posso ser eu a única a me condoer com o crescimento de uma comunidade na Gávea onde antes havia floresta, assim como me doeu no passado acompanhar a descida paulatina morro abaixo, feito lava, da favela da Rocinha.
Será verdade que só eu me encrespo diante das filas exaustivas que me aguardam em cada aeroporto estrangeiro do mundo, filas que requerem dos passageiros já cansados pela viagem uma hora a mais de espera para ter o passaporte carimbado e poder enfim atravessar fronteias?
Só eu me sinto atingida vendo as multidões vomitadas pelas estações de metrô, as multidões que lotam os restaurantes na hora comercial do almoço, as multidões apressadas nas calçadas e nas ruas, as longas filas à espera da condução, as filas no banco, no correio, no supermercado?
Só eu sangro, e não por motivos estéticos, observando a moderna multidão sempre mais gorda que o devido, por sobrepeso de desejos artificialmente estimulados, desejo de reconhecimento, de consumo sem fim, de sucesso, e de comida, que pode ser mais fácil de obter?
Só eu me surpreendo diante da autocomplacência com que tantos se fotografam constantemente, seja aonde for, para logo postar a foto e garantir seu mínimo segundo de atenção num celular alheio?
Não, certamente não sou só eu. Somos muitos já. Mas somos poucos ainda.
Sociólogos, economistas, historiadores, psicólogos, artistas e empresas se debruçam sobre o comportamento da nossa era em mutação, buscando entende-la e procurando novos caminhos.
A multidão não é apenas multidão. É consumo, produção de lixo e fezes. É mudança de atitudes. Na multidão não somos parte, não temos reconhecimento, somos apenas indivíduos, somos anônimos, e estamos sozinhos. Assim como na densa floresta as árvores têm que se sobrepujar para garantir acesso à luz, na multidão dos nossos tempos os humanos se enfrentam para conquistar seu lugar ao sol.
Acabei de comprar o livro do filósofo coreano-alemão Byung-Chul Han, “No enxame”, em que define como enxame digital a nova massa atada a computadores e celulares, e analisa: “O socius [“social”] dá lugar ao solus [ “sozinho”]. Não a multidão, mas sim a solidão caracteriza a constituição social atual.”
A epígrafe do livro é uma frase extraída do Fausto: “As lágrimas jorram, a terra tem-me novamente”