Marina Manda Lembranças A mulher abriu a janela e, cotovelos no peitoril, se pôs a olhar para fora. Eu também olhava para fora, no ta...
Marina Manda Lembranças
Pensei que estivera até então empenhada em tarefas domésticas, ou frente ao computador trabalhando, ou até mesmo costurando, e abrira a janela como um pássaro deixa com um bater de asas o ninho. Ela, que não tinha asas, as adquiria furtando-se ao ar condicionado no dia tão quente e postando-se em contemplação daquele fim de tarde.
Não havia muito o que ver. A janela era no primeiro andar de um prédio antigo, numa rua muito movimentada de Copacabana. Um parquinho em frente, algumas árvores, o fluir compacto dos carros, as pessoas andando apressadas nas calçadas. Mas a mulher olhava, em repouso, como se visse muito mais que isso.
Não tinha celular na mão, não estava empenhada em imagens. Olhava a luz cambiante que se fazia rosada, absorvia o ar como se oficiasse a cerimônia de encerramento do seu dia de trabalho. Era uma cena antiga e reconfortante.
Talvez olhasse para dentro, num trabalho de bordado em que o que via por cima do bastidor remetia a lembranças internas, o fio indo e vindo entre superfície e penumbra, entre realidade e memória, entre o fora e o dentro.
Quando somos jovens, olhamos vorazmente, um olhar de apropriação só voltado para o presente. Mas o rosto da mulher, seu abandono confiante sobre o peitoril, me diziam que não era jovem. E não sendo jovem, havia certamente amealhado um rico enxoval de vida.
A partir da maturidade, da quase velhice, o olhar se torna cúmplice da memória. Tudo o que vemos, ou grande parte, nos remete ao passado. Não é saudosismo. É patrimônio acumulado, riqueza oculta que só ao proprietário pertence e à qual só o proprietário tem acesso.
A mulher na janela podia estar vendo a rua como é atualmente com suas lojas e bares, e, sobreposta como uma foto, vê-la como era quando ela havia ido morar naquele prédio. Podia ver o parquinho e ao mesmo tempo revê-lo como quando fora construído, máquinas e terra revirada, apenas uma promessa até ficar pronto. Via as pessoas sem rosto na multidão das calçadas, diferentes como sempre haviam sido, apressadas, menos as que levavam cães na coleira. Via carros, ônibus, bicicletas, patinetes, skates e motocicletas, o mesmo rio compacto do passado que só à noite cochila.
Tudo muda o tempo todo e nosso olhar é pouco para acompanhar tanta transformação. Só conservamos o que é importante para nós, ou o que nos impacta em determinado momento. E nada nos garante que o que guardamos corresponda à realidade.
O sinal abriu e levei comigo no taxi, como se a estivesse sequestrando, aquela mulher que olhava da janela o final da tarde e, sem ter-me visto, não me incluíra nele.
Durante todo o trajeto pensei nela perguntando-me quem seria de fato, e o que, além das minhas conjecturas, a tinha levado a postar-se no peitoril como uma senhora antiga ou a habitante de uma pequena cidade do interior. Anoitecia quando, finalmente, cheguei ao destino onde iria trabalhar. Não sei se a mulher seguiu no taxi ou se saltou comigo. Só a reencontrei agora.