Marina Manda Lembranças L ia jornal ao mesmo tempo em que tomava café, quando um elemento novo entrou no meu campo de visão. A meno...
Marina Manda Lembranças
Olhei para cima. No prumo estava o lustre ou luminária da sala de jantar. Eu não devia nem entrar nesse detalhe que me dá ar de dona de casa desmazelada mas, convenhamos, não dá para subir na escada toda semana, espanador em punho, para livrar a luminária do pó que rapidamente tornará a se acumular.
Volto à aranha: movia com extrema delicadeza suas oito finíssimas patas, a mesma delicadeza com que uma secretária digita cuidando de não estragar as longas unhas que acabou de fazer.
O fio saído do seu abdômen parecia elástico. Ainda assim, a fiandeira não desceu até a mesa. Talvez assustada com a minha presença embora tendo me visto lá de cima antes de começar a descida, hesitou, desceu alguns centímetros, subiu o equivalente, parou como se estivesse avaliando o mais conveniente a fazer, e voltou rápida para o alto, para sua toca ou casulo ou teia na luminária.
Sei que aranhas fiam seu fio e usam o peso do corpo para coordenar a teia. Mas não tenho ideia do que fazem com o fio quando voltam sobre seus próprios passos, se assim se pode dizer. Não sendo dotadas de carretel, onde o recolhem? A minha não deixou testemunho de sua breve presença, nenhum fio pendente, nenhuma teia. Entrou no meu campo visual e dele saiu sem um som, e sem que eu soubesse quais as suas intenções. O único rastro dela ficou em mim, momento de mínima beleza para aclarar o dia entre o pão e o noticiário do jornal.
Pensei logo em Arabella. Quando, em junho de 73, foi lançada ao espaço na missão Skylab 3 fiz uma crônica para ela, lamentando sua triste sina. Eram duas aranhas de jardim, da espécie Aranha Cruz. A outra chamava-se Anita, mas pouco tinha a ver com Anita Garibaldi de quem levava o nome, era tímida, mais confusa. Arabella, a star da missão, começou a fazer sua teia logo no primeiro dia, embora a deixasse incompleta.
Em setembro, quando a missão voltou, trouxe dois minúsculos cadáveres. Embora alimentadas com moscas domésticas e molhadas, Anita e Arabella não resistiram. A causa mortis não foi divulgada, apesar dos corpos estarem até hoje expostos em museu. Mas acho que ou morreram de stress ou de vergonha. Ao analisarem as teias, os laboratórios da Nasa descobriram que havia nelas notáveis diferenças de espessura, passagens mais grossas e outras mais finas, ao contrário das teias terrestres tecidas todas com fio de idêntica dimensão. Uma aranha, quanto mais uma Aranha Cruz conhecida pela perfeição concêntrica das suas teias, não suportaria tamanha imperfeição.
Minha aranha ruiva não ia fazer teia. Não havia, na altura do meu nariz, nenhum ponto de apoio além do próprio nariz, e ela não arriscaria seu trabalho a partir de tanta mobilidade.
Talvez estivesse me olhando como eu a olhava. Senão com o mesmo encantamento, com desconfiança, pois os humanos são notórios assassinos de insetos. Eu até tinha, embaixo da mesa, um frasco matador que só uso em legítima defesa, contra mosquitos. Jamais borrifaria com ele criatura tão estética.
Temos algo em comum, embora ela não o pudesse saber: ambas gostamos de fios, ambas tecemos. Como ela, suspensa e improvável, me lanço no espaço vazio. Mas o fio que me sustenta é feito de palavras.