Marina Manda Lembranças I a a um encontro de fim de ano mas, prudente que sou e sem conhecer o endereço, cheguei adiantada. Problema n...
Marina Manda Lembranças
Eu que sempre ando rápida, permiti-me a leseira dos passos. Caminhei lentamente até a esquina. Na esquina havia um poste, e no rebordo do poste cochilava uma chave.
Pensei logo que alguém havia perdido aquela chave. E que outro alguém a recolhera do chão, colocando-a bem visível naquele rebordo para que o dono, voltando sobre seus passos à procura do objeto perdido, a encontrasse com facilidade. E pensei ainda que o dono da chave se alegraria com o gesto generoso de quem não conhecia nem viria a conhecer.
Uma chave não é um objeto qualquer. Como se parte de um casal, a chave está sempre acoplada a uma fechadura. A fechadura é o corpo invisível da chave, que só se abre ao seu comando e só ganha sentido através dela.
E uma chave abre portas, nem que sejam as infinitas portas do imaginário.
Estava eu abrindo portas, ou seja, anotando essas digressões acerca de chaves e fechaduras, quando levantei os olhos para pensar. E o que vi era outra porta se abrindo sobre um mundo ao qual eu não pertencia mas que, naquele segundo, me sequestrou através do olhar.
Sem que eu tivesse ouvido qualquer admoestação, qualquer mínimo som além daqueles que compõem uma tarde plácida em Ipanema, vi à minha frente um policial empunhando uma arma e apontando-a, em posição de ataque, contra um carro cinza parado na esquina. A roupa preta, o colete protetor cheio de bolsos com implementos, o bate-boot bem plantado no chão eram tão ameaçadores quanto a arma. E a postura do corpo.
A figura negrovestida vociferou algo que não ouvi, posto que dirigido ao ocupante do carro. O motorista abaixou o vidro, vi lá dentro um sujeito medianamente jovem, de barba, e outro homem sentado no banco de trás. O policial aproximou-se, ainda apontando a arma. Parlamentaram. O policial fez sinal com a mão esquerda para o motorista ir embora. O vidro foi fechado, o carro se afastou obedecendo ao trânsito. O policial guardou a arma no coldre e, já com outra postura, foi comentar o caso com seu companheiro de viatura, até então fora do meu campo de visão e neutro ou inoperante.
Estávamos na esquina da rua Canning, onde morava meu querido amigo Fernando Sabino, com a rua Gomes Carneiro, às quatro e quarenta e cinco de uma tarde aparentemente pacífica, e eu quase presenciara um assassinato.
A morte não está mais escolhendo bairro nem hora. Distantes estão os anos da bossa nova, com seus barquinhos e azul do mar, as crônicas de Fernando já não seriam tão sorridentes.
Estava na hora do meu encontro. Refiz o caminho, agora com o passo de sempre. Peguei os embrulhos com o porteiro e subi. Ia visitar meu sobrinho que havia-se mudado com a família para um apartamento novo, e levava para ele um presente ritual: pão e sal, símbolos de benesse e fartura, benção para uma nova casa.
Mas minha alma havia sido contaminada com o vinagre da ameaça, e demorei algum tempo para restabelecer nela o sagrado sabor do pão. Só depois de tê-lo recuperado pude contar o que havia visto, sem que o vinagre contaminasse o encontro.
Que os dias do ano que agora começa nos tragam à alma sabor de pão.