Marina Manda Lembranças C om o enredo “De Alma Lavada”, a Viradouro fez bonito na Sapucaí, e sagrou-se campeã do Carnaval carioca de 2...
Marina Manda Lembranças
Muito bonito, muito surpreendente, de fato. Mas a escolha da sereia como símbolo do feminino assumido foi um equívoco.
As sereias são criaturas mitológicas antiquíssimas e nada simpáticas. As primeiras tinham rosto e tronco de mulher e corpo de pássaro. Eram temíveis e comparáveis as Harpias. Só mais tarde adquiriram corpo de escamas. Em representações mais antigas aparecem com dupla cauda, cada uma delas voltada para um lado.
Nas lendas gregas eram o terror dos navegantes, pois não havia como resistir a sua beleza e a seu canto. Enlouquecidos de desejo, os homens entravam no mar e elas os arrastavam para o fundo e os devoravam. Homero fez Ulisses pedir a seus argonautas para amarrá-lo ao mastro a fim de ouvir o canto sem ser levado por ele.
As sereias pertencem à grande família das ninfas da água que aparecem na mitologia de muitas culturas. Os irmãos Grimm têm dois contos dessas ninfas, saídas do folclore alemão, “A ondina do lago” e “A ondina”. Ambas são perversas. Uma arrasta um moço e a outra duas crianças para dentro do seu domínio líquido, mantendo-os prisioneiros.
A sereia começa a se tornar boazinha com o conto “Ondina” do barão alemão Friedrich De La Motte-Fouqué, que serviu de base a Andersen para criar “A pequena sereia”. Por seu lado, Fouqué, autor romântico de grande sucesso, havia ido buscar inspiração em Paracelso, alquimista, médico, astrólogo suíço-alemão do século XVI.
Ondina não tem cauda, é uma ninfa, mas precisa casar com um humano para adquirir a alma que lhe falta. E vai chorar muito por amor, as lágrimas como metáfora de sua origem aquática. A maldade ficará por conta de seus pais, que vendo a filha abandonada e sofredora provocam uma espécie de tsunami matando o objeto do amor dela. Suas lágrimas correrão como um riacho eterno rodeando o túmulo do amado.
Essa ninfa passiva e lacrimosa, trocada pelo amor de outra mulher, está muito longe de ser um símbolo feminista.
A Sereia de Andersen tem cauda de peixe, mas está igualmente em busca de uma alma, que só pode obter se um humano se apaixonar por ela. O príncipe se encanta por ela mas se apaixona por outra. E a Pequena Sereia é obrigada pelas leis da água a virar espuma. Terá que encarar 300 anos de sofrimento e bondade para ter direito a uma alma só sua.
Séculos mais tarde, Disney transformaria a sereia de Andersen em calda açucarada, operando a metamorfose das Harpias devoradoras e manipuladoras em gentis seres amorosos. Agora a Pequena Sereia está como um bombom nas mochilas e camisetas cor de rosa de meninas do mundo inteiro.
Mas daí a virar símbolo de mulheres aguerridas e donas do seu destino vai uma distância imensa. Quesito estético do carro abre-alas da Viradouro, nota mil. Quesito simbólico, nota zero. Ainda bem que (quase) ninguém reparou.