Marina Manda Lembranças D esde que vi “Mulher” em sessão de pré-estreia, não paro de dizer a todos que este documentário não se pode pe...
Marina Manda Lembranças
Realizando pelo francês Yann Arthus-Bernard — já conhecido nosso pelo livro “A Terra vista do céu” — e a ucraniana Anastasia Mikova que trabalhou com ele anteriormente no documentário “Human”, é mais que um documentário sobre o feminino. É construção emocionante, mosaico grandioso sobre a mulher formado a partir de 2000 entrevistas realizadas em 50 países.
Rostos femininos do mundo inteiro se sucedem em close, sobre fundo infinito, libertando a palavra das mulheres. E ao longo desses depoimentos de vida, vai surgindo “o laço emocional, natural e espontâneo” — como definiu Anastasia — que liga as mulheres entre si, e que podemos chamar sororidade.
Em “Mulher”, mulheres antes invisíveis na sociedade, se afirmam.
Imagino o que deva ter sido a montagem dessas 2000 entrevistas, de tanto material gravado, para alcançar o ritmo que avança lentamente rumo aos temas mais ásperos da condição feminina.
Fala-se alegremente da primeira menstruação, façanha, rito de iniciação, ou susto pelo desconhecimento ao ver o sangue gotejar. Um pai é invocado como comprador do primeiro pacote de absorventes, oferecido como um troféu.
Fala-se docemente de amor, e uma viúva pergunta como pode amar a si mesma agora que seu amado se foi. Fala-se de sexualidade. Uma senhora de muita idade diz do paraíso que foram seus orgasmos, que ao ter o primeiro pensou fosse um desequilíbrio cerebral e fugiu para outro quarto, e seu companheiro, o mesmo que sempre fez questão que ela tivesse prazer antes dele, foi busca-la. Outras não tiveram tanta sorte. E uma delas a encontrou no sexo com outras mulheres.
Fala-se, com quanta paixão, com quanto encantamento, da maternidade. E os bebês entram em quadro, acariciados, beijados, razão de ser das próprias mães.
Fala-se de trabalho. Quantas imagens de mulheres em trabalhos aparentemente inusitados! Uma médica poderosa conta cheia de bom humor como foi preterida nas sua escalada profissional, homens recebendo só por conta da masculinidade cargos que a ela caberiam, e termina o relato em gargalhada vitoriosa, quando se soube ao final da escalada que ganhava mais que todos eles. O documentário mostra uma imensa fábrica de vestuário — tão imensa que não se vêm os limites — em algum país oriental, as costureiras uniformizadas e de touca, cada uma realizando um só tipo de tarefa, cada uma afundada em repetição e monotonia, sem jamais ver completa a peça de roupa que ajudou a confeccionar.
Progressivamente vai-se para temas mais espessos. Uma prostituta dá seu depoimento. Uma mulher relata como, desde criança, tentou apagar sua feminilidade porque sentia o olhar cobiçoso do pai pousado nela, cortou seus longos cabelos e a mãe chorou vendo as madeixas no piso, nunca se maquilou, mas o apagar-se não foi suficiente, o pai a violou durante anos.
Outras relatam como foram vendidas na infância e escravizadas para prostituição. Ou vítimas de guerra, sequestradas ou violadas por soldados. Duas, de países onde essa é quase uma tradição, mostram o rosto queimado por ácido pelo companheiro.
“Mulher” responde à pergunta tantas vezes formulada por Yann Arthur-Bernard: “Por que não conseguimos viver juntos?”. Porque, enquanto persistir esta diferenciação de direitos e de valor entre homens e mulheres, o “juntos” será apenas uma ilusão.