Marina Manda Lembranças V ivemos tempos de pandemia em que o respeito a si e aos outros obriga a ficar em casa. E em casa a mente, ant...

Marina Manda Lembranças
Leio nos noticiários que Bergamo foi a cidade italiana mais atingida pelo novo coronavírus, e vejo na televisão imagens da cidade com ruas e praças vazias, seus habitantes cantando nas varandas onde penduraram bandeiras improvisadas com a escrita “andrá tutto bene” – tudo vai dar certo – opondo o otimismo coletivo ao contágio.
Outra, bem diferente, é a Bergamo que habita minha memória.
Quando, na primavera de 45 a guerra acabou na Itália, morávamos, meus pais meu irmão, uma prima e eu, exatamente na Lombardia, agora vitimada por novo flagelo.
Deixamos a casa que havíamos alugado de um senhor judeu refugiado na Suiça, rodeada de verde, na encosta de um monte, e fomos morar provisoriamente na fabrica de botões de uma amiga da minha mãe.
Como havia sido durante os cinco anos de guerra, tudo continuava temporário. Antes fora “até a guerra acabar”, agora era “até o país se recuperar” e as pessoas, sobretudo as mais jovens, aprenderem uma nova forma de viver.
Na fábrica esperávamos apenas que passasse o tempo necessário ao restabelecimento das vias de trânsito. Queríamos voltar para a região que considerávamos nossa, a costa Adriática, onde morávamos antes da guerra recrudescer.
Quando afinal este dia chegou, embarcamos em um ônibus de aspecto precário, com nossas modestíssimas posses postas numa ou duas malas que nos seriam entregues somente na chegada.
Chegamos em Bergamo noite adiantada. Eu estava tão cansada que sequer lembro de ter visto a cidade destroçada pelos bombardeios. O ônibus parou num depósito ou estacionamento qualquer, os passageiros foram transferidos para um hotel. A ideia de hotel não se aplica. Tratava-se mais bem da espelunca disponível, onde fomos, mãe dois filhos e a prima, instalados no mesmo quarto com uma única cama. Ainda não havia sido tirada dos vidros a tinta preta que, durante a guerra, permitia acender a luz sem que houvesse vazamento. Sequer jantamos, imagino que tenhamos comido algo próximo do sanduíche. Eram tempos em que não se reclamava de comida.
Lembro, isso sim, claramente, que ao levantar o lençol a cama fervilhava de percevejos. Minha mãe tapou os bichos com a colcha. Ninguém tirou a roupa, dormimos vestidos como estávamos.
Dormimos tampouco se aplica. O urso de pelúcia do meu irmão, seu animal de estimação, mais que isso, seu security blanket, havia ficado na mala prisioneira do ventre do ônibus. O urso chamava-se Pippotto. A noite inteira meu irmão chorou, de insegurança e desamparo, emitindo o apelo que não podia ser atendido: “Quero Pippotto!”. A voz dele está até hoje em meus ouvidos.
Na manhã seguinte brilhava um morno sol de primavera, e nos acomodamos no ônibus com outro espírito, já voltados para o mar que nos receberia antes mesmo do fim da jornada. Pippotto, agora desnecessário, cochilava na mala entre peças de roupa.
Nunca mais voltei a Bergamo. A não ser hoje, levada pelo covid19. Não reconheci na cidade que a televisão me mostrou, aquela que nem cheguei a ver realmente. Mas o nome é tão íntimo meu como se tivesse passado ali muito mais que uma noite na cama povoada de percevejos.
Tudo voltou. Acabávamos de sair de uma peste, o coração em plena primavera. Agora enfrentamos outra, mas o coração, teimoso, verdeja.