Marina Manda Lembranças P orque retida em casa, resolvi enfrentar uma tarefa que há tempos me assombrava: arrumar livros empilhados so...
Marina Manda Lembranças
A tarefa é ingente, sendo a casa de dois escritores. E mais lenta se faz porque, levada por vício profissional, folheio cada livro, verifico a data, a dedicatória.
Não fosse isso, não teria achado a pérola apropriada para esses nossos dias, no número 1 da bela revista “et cetera” Literatura&Arte, de 2003. A pérola é o conto “Um Peregrino” de João Anzanello Carrascoza. Três capítulos breves, feitos só do diálogo entre duas pessoas, o peregrino e a dona da pousada que o recebe. O narrador é o peregrino.
“— Há lugar para um peregrino? — perguntei quando a porta se abriu e a mulher apareceu com o archote na mão.”
O archote serve para indicar um tempo outro, passado. E, nesse tempo, a praga espantou os hóspedes da pousada. Assim como agora uma nova praga espantou os moradores do nosso mundo, podemos quase dizer do nosso planeta, de ruas, praças e praias.
O peregrino vem das terras altas e se guiou pelas estrelas, traz estrelas nos olhos e os ombros molhados de trevas. É um contador de histórias.
Todo escritor é um contador de histórias, mas parece provável que Carrascoza tenha se inspirado nas mulheres de sua família, no ambiente de tradição oral em que cresceu, no pai que lhe contava histórias na infância, o que o conduziu desde cedo à paixão pela literatura.
No conto, o peregrino janta um guisado de carneiro, resto do almoço. A mulher só toma vinho.
Ele já está deitado quando ela bate à porta e entra no quarto.
“—Vais me contar uma história? — ela perguntou.
— Estou exausto — respondi. — Amanhã se quiseres, conto-lhe várias.
A nossa também se aproxima, a passos nem tão lentos e, seguramente, nada felpudos. Seu avanço ocupou todo o espaço dos noticiários, todo o espaço dos jornais, domingo ouvi uma sirene tocar a intervalos regulares e uma voz instando todos a ficarem em casa. Só de vez em quando uma música emana de algum carro que passa de janelas abertas ou da comunidade ao lado.
E na segunda acordei deprimida, cheia de estranhamento, com indigestão de notícias. Não fui a única. O bafo da praga nos chega pelo celular, temos a impressão de vê-la espiando atrás das árvores da rua, ou de surpreende-la desrespeitando o sinal enquanto pedala a bicicleta.
Como disse o próprio Carrascoza em uma entrevista, nem todos precisam de literatura mas todos precisamos de narrativas. Precisamos de narrativas para contar a vida, para dize-la com nossas vozes, e para que outros a ouçam contada por nós. “— Toda história é para dois” diz o peregrino.
“— Se não queres contar, então escreva a tua no meu corpo — ela disse, o hálito de vinho em minha face.”
E a dona da hospedaria, a mesma que minutos antes havia dito “amanhã podemos estar mortos”, apaga o archote e sobe à cama do peregrino.
O que leva a estalajadeira à cama do peregrino, bem mais que o vinho, é o ímpeto latejante da vida. A narrativa da noite de prazer será escrita como uma tatuagem no corpo dos dois, agora amantes. E servirá como antídoto contra a praga que se aproxima.