Marina manda lembranças C orria o penúltimo ano da Segunda Guerra quando li “Robinson Crusoé “adaptado para crianças. De uma maneira su...
Marina manda lembranças
Só agora tomo conhecimento de que Daniel Defoe, ao publicar sua história em 1719 na forma de folhetim no The Daily Post, pode ter tido outra fonte de inspiração além da aventura real do marinheiro escocês Alexander Selkirk . Este, tendo se desentendido com o comandante do navio pirata em que navegava pediu para desembarcar, e viveu sozinho durante quatro anos e quatro meses numa ilha do Pacífico, até ser resgatado.
Tudo leva a crer que Defoe tenha lido o texto árabe do seç. XII , “ O filósofo autodidata”, escrito pelo filósofo andaluz Ibn Rufail, e só traduzido para o latim cinco séculos mais tarde, graças à viagem de um eminente orientalista inglês que descobriu o manuscrito e o trouxe para a Inglaterra. Ali seria traduzido por seu filho, o que permitiu que se tornasse um verdadeiro best-seller na Europa.
A personagem de Rufail é bem mais densa filosoficamente que o marinheiro escocês. Hayy assim se apresenta: ”Minha história começa numa ilha pequena. Não sei como nasci. Da irmã de um rei ciumento, de uma terra vizinha, escondido num baú e trazido até aqui pelas ondas e pelo vento, ou de uma gota de argila, sem pai nem mãe, de um pouco de matéria, na fermentação de uma bolha de onde a alma teria emanado.” Pode ter sido gerado por um homem e uma mulher como todos os humanos, ou a partir da argila e de um sopro, como Adão. E, mais que Adão, está sozinho, nu, sem família e sem país, sem linguagem, sem mestre. Terá que se inventar.
A funda invenção começa quando Hayy encontra o cadáver da gazela que o criou. Desesperado diante da morte que questiona, depara-se com a vida. Só então toma consciência da própria nudez, cobrindo-se com o couro seco de uma águia.
E, de degrau em degrau, interrogando o corpo e a alma, o que é visível e o que não o é, alcança a compreensão do Universo e se vê face a face com o deus que o fez. Livre de dogmas, torna-se o filósofo autodidata.
Mais tarde visitará a ilha vizinha, Absal, entrará em contato com a linguagem, a sociedade, os ritos alheios. E, recusando tudo isso, regressará à sua ilha, à solidão, ao seu pensamento.
Um outro filósofo, moderno, Jean-Baptiste Brenet publicou em fevereiro, na França, uma bela adaptação do conto árabe original.
Conheço bem a possível lentidão do mercado editorial. Ainda assim, considero não seja por acaso que livro tão oportuno chegue à luz em tempos ásperos.
Como na minha infância, e ainda mais do que na minha infância, estamos todos ilhados em nossas casas. O mar ao redor se nos afigura cheio de tubarões vorazes que vagueiam prontos a atacar. Só alguns de nós estão sozinhos, a maioria está com cônjuge ou família. Mas todos, sozinhos ou acompanhados, sentimos necessidade de nos reinventar. Reinventar vida e rotina, reinventar as relações de afeto. E a reinvenção só se alcança questionando a vida. A isso se chama filosofia, mesmo que não necessariamente autodidata.