Marina Manda Lembranças O s jornais e as redes sociais estão cheios de depoimentos sobre como as pessoas têm ocupado seu tempo de confin...
Marina Manda Lembranças
Eu tenho tentado escrever e mal consigo. A mente saturada de más notícias demora a deslocar-se para o patamar do imaginário, como se o imaginário tivesse fechado as portas para impedir a entrada do vírus. Pensei fosse só eu. Mas não. Para meu consolo os amigos escritores relatam a mesma dificuldade, o texto sai bisonho, chama de gás baixinha que impede cozinhar pratos saborosos.
Ler, porém, todo mundo consegue. Meu amigo, o cardiologista Neif Musse, me manda uma mensagem, está lendo e me aconselha “Chão de ferro”, em que Pedro Nava descreve de maneira “imperdível” a gripe espanhola que viveu entre seus 15 e 16 anos. Neif ainda me assinala as páginas desta descrição, 198 a 213. Direi a Neif que a gripe espanhola matou minha avó materna na Itália, quando minha mãe tinha 5 anos.
As livrarias estão entregando em casa, fazendo lançamentos online – hoje mesmo recebi um convite – e registram um aumento de procura por livros do século passado que já podemos considerar clássicos – Camus com “A peste” em primeiro lugar. Em tempos de retiro, os livros são mais que nunca essenciais e parece mais palatável ler sustança e adquirir sabedoria, do que ler apenas para se distrair.
Até da Colômbia me chega uma solicitação. A grande feira de Bogotá, a FILBo, para a qual eu estava convidada, não se realizará este ano ou se realizará mais adiante. Mas recebo uma hashtag #AdoptaUnaLibrería. Os livreiros colombianos estão recomendando títulos através de #FILBo em casa.
Eu leio um livro para muitos exótico, para mim um presente trazido de Adis Abeba com dedicatória do autor, o padre Juan Gonzalez Nunez, “Etiópia, entre a história e a lenda”. Quando eu nasci, Eritréia e Etiópia formavam um único país, a Abissínia, e durante muitos anos me considerei etíope. Nunca consegui voltar, embora tentasse mais de uma vez. Agora, um convite planejava me levar no fim do ano para re-descobrir minha cidade natal. Teria sido uma comoção. Mas projeto e comoção foram atropelados pela covid19. Restou o livro, para me consolar.
E como nos alegra a confirmação científica daquilo que há muito sabíamos! Semana passada, o neurocientista Roberto Lent referiu-se a um trabalho científico de título: “A conectividade cerebral em crianças aumenta com o tempo de leitura de livros e decresce com a exposição a telas digitais”. Para o trabalho foram recrutadas cerca de 20 crianças de 8 a 12 anos cujos pais responderam a questionários dizendo o tempo empregado por seus filhos na leitura de livros físicos e o tempo empenhado em mídias digitais. Em seguida, os cérebros das crianças foram analisados por ressonância magnética funcional para avaliar o grau de conectividade das áreas de leitura. E, como diz Roberto Lent, “não deu outra”, o tempo de leitura de livros dava mais conectividade nas redes do hemisfério esquerdo do cérebro, do que o tempo passado diante de telas ou telinhas.
Todos os que trabalham com leitura sabem que ler livros desenvolve a atenção, organiza o raciocínio, amplia a capacidade de concentração. Mas a confirmação científica é indispensável para nos dar suporte na defesa do livro físico, o velho e adorável livro de papel.