Marina Manda Lembranças Q ue ninguém duvide, somos um país hipócrita. Agora dizemos que a pandemia revelou uma enormidade de invisíve...
Marina Manda Lembranças
Debaixo das marquises, preferencialmente as dos bancos, abrigam-se incontáveis moradores de rua com seus cães, seus cobertores e colchonetes. Fazem alguns anos retirou-se a água de fontes e laguinhos das praças para que não tomassem banho e não lavassem seus magros panos ofendendo olhares dos mais aquinhoados. As calçadas estão atravancadas de camelôs. Em todo sinal mais demorado funciona um ativo comércio ambulante. Ao mínimo sinal de chuva aparecem vendedores de guarda-chuvas. E os transeuntes compram sem nem encarar quem vende. Essa multidão só é invisível para quem não quer vê-la.
Todos os dias milhares de carros passam pela Linha Vermelha e pela Avenida Brasil. Nenhum motorista ou nenhum passageiro olha pela janela? Ninguém se dá conta de estar atravessando uma favela atrás da outra? Ninguém se confrange com isso? Ninguém se envergonha? Nem todos os habitantes das favelas são considerados invisíveis, mas muitos são.
Em 2010 inauguraram com grande estardalhaço o elevador do Complexo Rubem Braga com suas duas passarelas. Do meu terraço via centenas de “invisíveis” passando diariamente por elas. Isso, enquanto o elevador, erguido ao preço de 45 milhões, funcionou. Começou lentamente a se degradar, as cores chamativas foram enferrujando, funcionava um dia e não funcionava no outro. Até que parou definitivamente. Agora os invisíveis são obrigados a subir centenas de degraus e meu amigo Rubem Braga, que nunca errou uma crônica, deve estar lamentando seu nome atrelado a semelhante desastre.
O mesmo aconteceu com o Teleférico do Alemão. Inspirado no Metrocable da cidade de Medellin, entrou em operação em julho de 2011 e deixou de operar em outubro de 2016, ao que tudo parece, para sempre. Quando da sua instalação haviam sido importados técnicos de Medellin. Fui a Medellin mais uma vez no ano passado e pude conferir, o Metrocable deles não deixou de operar um único dia desde a inauguração.
Vi, ao longo dos anos, a Rocinha passar da quina do monte e, paulatinamente, descer como lava do outro lado. Agora já chegou à Gávea. Quando há tiroteio, o Liceu Francês, a Escola Americana e a Escola Parque – onde minhas duas filhas estudaram – sentem-se ameaçados.
Da janela do meu quarto acompanho o crescer de outra comunidade, que vai roendo a mata dia a dia e, dia a dia, se expandindo. Impossível acreditar que só eu veja.
O governo calcula que 50 milhões de brasileiros pedirão o auxílio emergencial. E ouvi uma autoridade dizer frente às câmeras que “até duas semanas atrás eram invisíveis”.
Se é verdade que o contingente aumentou muito devido à perda de renda imposta pela pandemia, é igualmente verdade que nossos pobres e miseráveis nunca estiveram ocultos.
Temos os dados do Censo, do Pnda (Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios Contínua), do Bolsa Família e, dia sim dia não, tomamos o pulso de emprego e desemprego. Os chamados invisíveis sempre estiveram diante do nosso nariz, e sempre pareceu mais conveniente não vê-los. O que os tornava invisíveis era o negacionismo de sucessivos governos e de sucessivas gerações daquilo que chamamos elite.
Foi necessária uma pandemia, uma tragédia planetária, para traze-los ao primeiro plano. E o Brasil será sem dúvida um país melhor se, passado o coronavírus, mantiver a visibilidade desse contingente de brasileiros até agora ignorados.