Marina Manda Lembranças O isolamento provoca sentimentos inusitados. Estou com saudades de uma família que nunca conheci e desejando v...
Marina Manda Lembranças
Explicações fazem-se necessárias.
Um amigo querido era construtor especializado em coberturas. Ergueu uma em um prédio alto quanto o meu, diante do meu embora à distância, com vista livre para o mar de Ipanema. Acompanhei a construção passo a passo e na voz do amigo.
Aqui, fazemos um corte na história. E deixamos passar um bom tempo.
Passado esse tempo, vejo numa revista a reportagem sobre um apartamento. Pela localização e pela vista, reconheço a cobertura construída pelo meu amigo, e nela entro através das fotos.
Fico sabendo que são três andares, o primeiro com a suíte parental e a representação, o segundo com os quartos dos dois filhos, o terceiro com piscina, deck, chuveiro, aquelas coisas de cobertura. O apartamento pertence a uma família francesa, sem fotos na revista.
Talvez por serem franceses usavam muito seu espaço ao ar livre. Via à distância os jovens filhos de calção, por vezes pessoas outras amigos ou convidados, um limpador de piscina. E à noite, com mais frequência no verão, as luzes se acendiam, havia uma festa, um jantar ou um encontro.
Fiz a ressalva à nacionalidade porque observo inúmeras coberturas do alto da minha, e desde sempre percebo que os cariocas compram ou alugam cobertura preparando-se para dedica-la à vida social. Para logo descobrirem que vida social em cobertura dá muito trabalho e polpuda despesa, e que mais cômodo é encontrar com os amigos na praia. Ontem mesmo, em plena pandemia, um cheiro de churrasco acompanhado de música chegou ao meu escritório vindo da cobertura ao lado, festejava-se a inauguração. Prevejo que cheiro de churrasco só me chegue uma ou duas vezes mais.
Eis que, pouco antes da chegada do coronavírus, qualquer movimento desapareceu do apartamento dos franceses. Calculei que tivessem saído de férias aproveitando o inverno do seu país para fazerem esportes de neve. Mas ou a família ficou retida pela pandemia, ou me enganei. Até agora nenhuma luz se acendeu, ninguém apareceu, a cobertura parece morta.
E eu me surpreendo com saudade dessa gente parecida comigo que também uso tanto meu espaço externo e, no verão, janto no terraço debaixo do toldo aberto.
A questão do homem que nunca cruzou meu caminho é completamente outra.
Assoma à hora do almoço, e só à hora do almoço, na varanda do seu apartamento. Mora no último andar de num apart-hotel altíssimo na Prudente de Moraes, contra cuja construção Millôr Fernandes lutou arduamente na imprensa, sem resultado, sabendo que a mole verdosa taparia os Dois Irmãos, visão privilegiada de que desfrutava do seu escritório. Eu também desejei ardentemente que a construção parasse antes de me roubar uma das ilhas Cagarras, mas os céus tampouco atenderam minha súplica.
O homem assoma à varanda pontualmente às treze horas, mais tardar treze e quinze. Menos aos domingos. Anda um pouco, olha a vista – de onde está, presumo que veja parte de Ipanema e a favela Cantagalo-Pavão-Pavãozinho. Não demora mais de dez minutos. E volta a entrar. Não aparecerá mais ao longo do dia.
Acostumei-me a ele, marcando como relógio a hora do meu almoço. Poderia pegar o binóculo para conhece-lo, ver sua idade e rosto, mas estaria cometendo imperdoável invasão de privacidade. Prefiro deixa-lo como parte do meu cotidiano de reclusão, anônimo e íntimo, como anônima e íntima é a família francesa de que sinto falta.