Marina Manda Lembranças E stou traduzindo mais um livro da autora argentina Maria Teresa Andruetto, “Os afogados”. Já traduzi quatro li...
Marina Manda Lembranças
Dou a sinopse.
Um casal jovem andou a noite inteira carregando uma mochila e o filho ainda bebê. Não sabemos de onde vêm, sabemos que fogem de perigo não dito e aonde estão. Numa praia, ou estuário de um grande rio, à procura de uma casa onde se abrigaram no passado para fazer amor quando ainda namorados, durante férias familiares. Passam por um afogado com o rosto coberto de algas e barro, quase não param. E encontram a casa.
Que durante alguns dias, enquanto o frio do inverno vem chegando, tratam de ajeitar. Saberemos adiante que ele esteve ligado a um sindicato, ela é apenas apaixonada por ele. E na única ida ao povoado, levado pela necessidade de comprar alimentos, o rapaz fica sabendo que muitos corpos de afogados têm dado à praia, vestidos, talvez trazidos pelas marés, talvez pelos ventos. E que gente estranha tem sido vista no povoado.
Evito spoiler e deixo de contar o final.
O livro é uma homenagem às vítimas dos “voos da morte”, prática da Guerra Suja na Argentina, em que quatro mil pessoas previamente torturadas e dopadas foram atiradas ao mar do alto de aviões, entre 1976 e 1983.
Os que, eventualmente, iam parar nas praias, com pernas e braços quebrados pelo alto impacto contra o mar, eram enterrados como NN (forma latina dos sem nome). Os voos duravam cerca de três horas e buscava-se o mar profundo para evitar que isso acontecesse. Os oficiais e pilotos da Armada eram orientados a não usar uniforme nessas operações.
Entre as vítimas estavam três das fundadoras do movimento Mães da Praça de Maio, e duas monjas francesas que as ajudavam a recolher fundos diante de uma igreja. Foram traídas por um beijo dado por um infiltrado e, depois de 10 dias de torturas, atiradas ao mar. Que, generoso, devolveu seus corpos. Só assim, em 2005, puderam ser reconhecidas. E só assim, 40 anos mais tarde do voo que as levou, os pilotos foram condenados à prisão perpétua.
O livro de Andruetto não o diz explicitamente, mas o rio “largo como um mar” a que se refere pode ser o delta do rio Paraná, ou o rio da Prata onde muitos corpos de supostos afogados foram encontrados. Os ribeirinhos viam os aviões jogando “pacotes”. Mas quando um deles foi conta-lo à polícia, recebeu a advertência de que, se insistisse em ver o que não era para ser visto, faria parte do próximo “pacote”.
Enquanto traduzia, voltou-me à memória o filme “Kóblic”, em que Ricardo Darín interpreta um oficial da Aeronáutica responsável pela coordenação dos “voos da morte”. Atormentado pelas lembranças, Tomás Kóblic veste o uniforme e deserta, para ir esconder-se em uma mínima cidade do pampa argentino, onde encontrará seu destino.
A publicação do livro de Andruetto torna-se extremamente oportuna neste momento, para lembrar aos mais jovens, que não viveram tempos obscuros, o risco de morte, metafórico e físico, que uma sociedade enfrenta quando debaixo do tacão de uma ditadura.
Foto: O Parque da Memória – Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado