Marina Manda Lembranças M inha filha primogênita (de uma mulher nunca diria “mais velha”) me disse de supetão: “Vou te dar um título ...
Marina Manda Lembranças
O título era “A guardiã da brasa”.
Pedi um mínimo de explicação. E ela, que durante a pandemia mora comigo, explicou que sempre demora mais alguns minutos depois de fumar, para certificar-se que a brasa esteja devidamente apagada. Faz isso em qualquer lugar não só na minha casa, por medo de causar um incêndio afastando-se quando o olho vermelho ainda dormita.
Problema antigo esse da brasa. Começou sete mil anos a.C. de forma inversa, o cuidado sendo para mantê-la acesa. Depois de perceber que nem sempre poderia contar com um raio para acender o fogo que se revelara tão útil, o Homo Erectus decidiu aprender a fazê-lo por sua própria conta. E conseguiu. Mas era processo muito trabalhoso, exigia juntar musgos secos e folhas idem, esfregar madeiras umas nas outras ou arrancar centelhas de pedras. Quando afinal o fogo pegava, o Homo já estava suado, não precisando mais dele. Melhor então deixa-lo aceso direto, na caverna, enquanto ele ia à caça. E quem tomava conta? Quem tinha musculatura mais fraca que a desqualificava para a caça e quem já estava tomando conta das crianças, a Mulier Erecta.
Não sabemos qual o castigo se o fogo apagasse. O que, sim, sabemos é que mais de 5 mil e quinhentos anos mais tarde o fogo continuava sendo considerado sagrado. E as mulheres continuavam tomando conta dele. Não só em cada casa, ou domus, do Império Romano a matrona se esmerava para que o fogo doméstico não apagasse, mas no templo da deusa Vesta, um contingente de virgens zelava por ele. Eram zelos cuidadosos que demoravam 10 anos para serem aprendidos, mais 10 para serem ensinados, e outros 10 entre um e outro dedicados às funções. O castigo não era aplicado se o fogo apagasse mas, ao contrário, se acendesse.
As virgens faziam voto de castidade por 30 anos, por vezes muito jovens, ou então consideradas velhas quando liberadas do voto. Se caíssem em tentação e fossem pegas em braços masculinos, o castigo era a morte. Podiam escolher a forma: ou decapitação, ou enterradas vivas com parco alimento e parca água, pouco mais que um lanchinho.
O homem que as havia seduzido, mas que não fizera voto de castidade nem estava a serviço de Vesta, era desterrado. Ou seja, elas embaixo da terra e eles flanando livres em terra alheia.
Hoje, ao ligarmos o computador, o micro ondas ou a luz, não pensamos na importância civilizatória do fogo. Que, através de seu substituto, tornou-se ainda mais sagrado. Basta a eletricidade apagar, para uma casa, uma cidade, um país ou até o mundo entrar em pane. É reverenciado nas usinas e nas torres de alta tensão. E não bastam vestais ou matronas para cuidá-lo.
Se o moderno fogo apagar, ninguém mais sobe de elevador, os sinais de trânsito param, as pessoas passam fome nos engarrafamentos, as câmaras de segurança fecham seu olho vigilante, as portas automáticas não se abrem, os caixas automáticos e os presenciais deixam de funcionar, a pilhagem se generaliza, vitrines são quebradas. E, pior que tudo, não podemos recarregar os celulares e ficamos privados das redes sociais!!
Minha filha tinha razão, o título que me deu de presente tinha seu valor. Se facilitar, ainda faço um conto com ele.