Marina Manda Lembranças A água de um poço dorme à meia noite, depois de receber a visita da lua cheia. Que, ao mergulhar no poço, tra...
Marina Manda Lembranças
Dura pouco a visita. Só o tempo permitido pelo percurso celeste. Em breve, enquanto a lua rasteja pela parede do poço, vencendo palmo a palmo como serpente ou inseto, a água puxa seu negro lençol, e dorme. Não pode ser acordada antes do cantar do galo, sob ameaça de desaparecer ou tornar-se fosca feito lama.
Um riacho corre entre pedras. Mas, só em curto trecho, aquela água antes refrescante a ser colhida e bebida na palma da mão torna-se venenosa. Não se sabe se por efeito de algas, de seres aquáticos ou do limo das pedras. O que, sim, se sabe, é que passado aquele trecho a água torna a correr tão refrescante e pura quanto antes.
Tenho pensado muito em água. E pensando, imaginei esses dois enigmas.
Pode ser efeito de estar tomando banho frio desde o início da pandemia. O aquecedor a gás do meu banheiro negou-se a funcionar e não tenho a quem recorrer – meu gazista sendo diabético e chegando aos 60, está recolhido em casa.
Ou talvez pense em água porque durante esses meses claustrofóbicos, do alto do meu terraço tenho olhado o mar com constância. O tenho, imenso, à minha frente, prova viva da esfericidade da terra – embora haja quem discorde e a considere plana – arredondando sua curva em direção a Copacabana.
Não olho apenas, romanticamente. Analiso. Aprendi com meu irmão Arduino, homem que tinha escamas debaixo da pele, a decifrar os ventos. Prevejo o tempo, e o clima. Recentemente fiz até um mínimo poema, quase um hai-kai destinado às crianças: o vento sudoeste / põe meias brancas / no pé das ilhas.
Se o vento sopra de Leste, a água esfria e também o sopro que vem do mar. Se é sudoeste que chega, há que fechar janelas, o mar se encapela, as ondas aumentam, e a frente fria avança trazendo chuva. A água, porém, se faz clara como cristal.
Sou um lobo do mar, ou assim me considero por muito mergulhar com Arduino. Meu escritório guarda entre livros o imaginário perfume da rosa dos ventos.
O pensamento, entretanto, pode estar ligado à água por questões bem mais utilitárias. Acabei de lavar, com meticulosidade talvez excessiva, todos os itens que vieram do supermercado. Dois quilos de tomates, cada tomate lavado com esponja e sabão de coco. Todas as caixas de leite, integral e sem lactose, todos os pacotes de manteiga. Até as carnes foram submetidas a banho. Nunca pensei que me tocaria lavar batatas, beterrabas e pepinos. Mas lavei. E aprendi que mangas não devem ser lavadas porque apodrecem, bananas também não.
Muitas casas brasileiras não têm água. E outras tantas — ou até mais que tantas — não têm água potável. Pergunto-me se adianta lavar gêneros com água não potável, já que vírus de covid19 têm sido achados em esgotos, e nossa água não potável é isso, um campus avançado do esgoto. Respondo a mi mesma que sim, porque o que mata o vírus é o sabão. Resta saber se há gêneros, e se há sabão disponível para algo mais que o corpo, ou até mesmo para o corpo, em plena miséria.
Olho o oceano, mas o que aflora inevitável é a pandemia e, junto com ela, o desequilíbrio social que durante séculos teimamos em não ver e que a covid19 nos obriga a encarar.