Marina Manda Lembranças Q uando o comercial do Agro (negócio) tinha um quadro que mostrava carne sendo cortada e embalada em um matadou...
Marina Manda Lembranças
Li em alguma parte, e nunca mais esqueci, que um terço dos porcos morre – creio que nos USA – dentro dos caminhões que os transportam rumo ao abate. A matéria dizia que o que os mata não é o desconforto da viagem, por vezes muito longa, é a previsão do que os espera à chegada.
Faz alguns anos, em viagem ao Pará, me contaram que muitos netos de japoneses estavam emigrando para o Japão em busca de melhores oportunidades. E soube de duas irmãs que haviam ido, uma tendo chamado a outra, para trabalhar em um abatedouro de aves. O ambiente era gelado, o cheiro insuportável, o horário pesado, as férias quase inexistentes, mas nenhuma das duas pensava em voltar. Lembro de ter perguntado a mim mesma que vida era aquela à qual as irmãs se ancoravam.
Agora sei.
Um documentário da televisão francesa trouxe o depoimento de sete funcionários de abatedouro. O título é significativo “les Damnés, des ouvriers en abbatoir” (os Danados, funcionários no abatedouro).
“Eu mato os animais. Faz dez anos sou o matador, funciona assim: 250 porcos, 70 vacas, sem contar as vitelas [...] eu encosto o Matador na testa, olhando o animal nos olhos, e atiro. A haste entra no crâneo, o animal desaba [...]. Depois é pendurado e a gente o sangra.” Do depoente só se vêm as mãos – as mesmas que matam e sangram – e o capuz. Ele continua “Se é vaca leiteira, tudo se espalha no ato. Você recebe todo o leite que sai das tetas e você fica ali, coberto de leite, de sangue, de merda, entra no seu pescoço, na boca. E você tem que correr logo para abater o seguinte”.
Há quem tenha outra função. “Eu agarro o fígado, os pulmões, e os penduro, assim. Os rins separados. Podemos tirar as tetas, podemos tirar os sexos. [...] É um filme de horror permanente. Este é o meu cotidiano. Pendurar órgãos.”
E todos falam do cheiro. “Penetra por toda parte, não só pelas narinas. Então a gente começa a respirar pela boca.”

O documentário, ao contrário da publicidade Agro, não mostra uma única cena de abatedouro. Foi todo rodado em um bosque, talvez em homenagem à vida selvagem. As palavras bastam.
Matar 250 porcos e 70 vacas todos os dias, tendo que olhá-los nos olhos antes de disparar, é atividade que se imprime no matador. E que não se comenta em família. Muitos pensam em mudar de vida, alguns deprimem, poucos introjetam o desejo de morrer. Mas a maioria fica, retida pelo salário alto.
Quando cheguei ao Rio, me surpreendi com as lojas de galinhas e ovos, as bichinhas nas gaiolas, cacarejar e cheiro chegando à calçada. Hoje penso que talvez fosse mais piedoso assumir a morte como bom selvagem, em vez de fazer de conta que não temos nada a ver com ela.