Marina Manda Lembranças E ntrei no banheiro e dei de cara com oito cadáveres! Oito criaturas mortas jaziam sobre os azulejos do piso. Fo...
Marina Manda Lembranças
Tomada pelo espírito de Hercule Poirot, indaguei rapidamente na casa, tentando saber se alguém havia pisado nelas por acidente ou de propósito, ou se algum desinfetante as havia levado a óbito. Eram apenas formigas, diriam alguns dando de ombros com ar de mofa, mas a esse time eu não pertenço.
Antes de terem sido eliminadas por alguma misteriosa chacina, as formigas estavam vivas, transitando no banheiro quase alegremente, sabendo que, no que me diz respeito, estavam tão seguras quanto no formigueiro. Toda vida é uma vida. E cada vida está ligada a uma cadeia de outras vidas, a uma coletividade na qual desempenha alguma função. Cada vida faz falta às outras vidas que participam de idêntica estrutura.
Nisso pensava eu olhando, não sem comoção, os oito corpos agora encolhidos, já murchos, oito manchinhas pretas que só por terem patinhas lembravam os seres vivos que haviam sido poucas horas antes – pois de manhã entrara no banheiro e as vira, ou a suas irmãs, circulando afoitas e trocando direção subitamente como fazem as da sua espécie.
Naquela mesma manhã, depois do banho, vira também o jornal e, diante da foto do casal americano enfurecido apontando armas para um ato contra o racismo, havia me perguntado como aqueles dois aguentariam ver desabar alguém caso atirassem, como aguentariam assumir papel de deus ou de demônio tirando o respiro de alguém vivo.
É uma pergunta que volta e meia me faço, seja para os autores de uma chacina, seja para quem faz da caça um esporte. Um cadáver, penso, se leva a vida toda no ombro. E pesa.
Não tenho especial admiração por baratas. Mas dia desses me deparei com uma delas no terraço. Mantinha-se imóvel e não parecia bem. Sequer moveu as antenas quando me aproximei. Estava empoeirada ou cascorenta ou com fungos nas asas fechadas sobre o corpo, aparentava muita idade. Pensei que estava velha, prestes a morrer ou preparando-se para isso. Deixei-a entregue a seu momento. Quando, mais tarde, passei pelo mesmo lugar, havia desaparecido. Talvez, como os elefantes, tenha ido procurar um cemitério adequado para exalar seu último respiro.
Sei que muitos esmagam baratas com o pé, e olhando o cadáver que sob a força da sola expulsou seu conteúdo, se comprazem com seu feito. Da mesma forma se comprazem os matadores profissionais ao ver cair aquele, ou aqueles que foram contratados para eliminar, sem que nenhum ressentimento ou ódio ou motivo de vingança impulsionasse o gatilho. O dinheiro é para muitos motivo suficiente. Como o foi para Mad, na RG Leonardo Gouveia da Silva, chefe do Escritório do Crime, preso antes de ontem com seu irmão Leandro em Vila Valqueire. O Escritório cobrava um milhão e meio pelo serviço, mas agia com alta tecnologia, apoio de drones e informações privilegiadas.
Impossível não pensar na força mortífera do dinheiro quando, a cada dia e em plena pandemia, somos notificados de tanta roubalheira, tanto sobrepreço, tantas falsas empresas com seus falsos endereços, tantas concorrências fraudulentas, tantos fornecedores ligados à família de quem assina o contrato, tantos respiradores e leitos e hospitais de campanha nunca entregues, tanto enriquecimento ilícito custando tantas vidas sem que nenhum ressentimento ou ódio ou motivo de vingança impulsione o gatilho.