Marina Manda Lembranças D omingo, em uma live para o congresso Conaler, de Leitura, disse que não ia usar a palavra ‘compaixão’ porque já a ...
Marina Manda Lembranças
Muitas vezes agora, quem a pronuncia não frequenta o sentimento que a gerou, nem o pratica. Apenas lança mão da palavra mais fácil, a que está em moda e que facilmente lhe vem à cabeça, com a mesma falta de convicção com que pegaria um lenço de papel para dar conta de um espirro.
Um bom termômetro para medir o quanto uma palavra está gasta é acompanhar sua presença nas redes sociais. Se surge com abundância nos posts dos influenciadores, se a toda hora trombamos com ela, tempo chegou de abandoná-la ou de retomá-la somente lá adiante, quando estiver coberta de poeira e esquecimento.
Palavras são como roupas, o uso excessivo as torna puídas e lhes rouba a luz. Palavras se apagam, iguais a estrelas.
Estou fazendo uma tradução em que aparece com frequência a palavra que já foi um apelo: ‘companheiros’. Quando o autor escreveu o livro, na década de 40, a palavra ainda reverberava. Cheia de centelhas, havia sido palavra e bandeira por muitos anos. Hoje, depois de tanto desgaste, de tanto uso indevido, de tanta falta de sinceridade ao dize-la, de tanta utilização nos palanques eleitorais, a leio quase com ironia. Certamente a mesma com que o autor, um precursor, a escreveu.
Idêntico pecado pesa sobre todo lugar comum. Embora tantos nem saibam o que esta expressão significa e os colham como se flores perfumosas fossem, os lugares comuns detonam qualquer conversa, envenenam qualquer escrita.
Ainda assim são recheio de toda má poesia, e de tantas e tantas letras de música pop. Por que? Porque são fáceis de entender e fáceis de assimilar, se aliam à maioria dos repertórios individuais, geram identificação imediata. Fui publicitária durante muitos anos e, embora fugisse deles, aprendi que lugares comuns são benvindos em anúncios, sobretudo quando há pouco espaço disponível para texto. Um bom lugar comum tem a vantagem de ser imediatamente reconhecido pelo consumidor potencial, e estabelece links com sua memória afetiva. O lugar comum não exige análises, não precisa de interpretações nem de conhecimentos específicos. O lugar comum não humilha ninguém. Vai sozinho, direto para seu encaixe.
No lado oposto, que estupenda é a metáfora! Palavra que diz uma coisa, mas guarda outra atrás das costas, parcialmente, só parcialmente oculta. Palavra de muitas portas, possibilitando a cada fruidor abrir a sua. Palavra tandem, que se pedala em parceria, já que exige a percuciência do outro para completar seu sentido. Palavra paisagem, que como mar, mata ou deserto nos encanta, pois sabemos que guarda rico tesouro em seu ventre.
A metáfora é um desafio para a inteligência e um alimento para a sensibilidade.
Não precisamos ter conhecimentos para desvendá-la, mas tê-los favorece o entendimento do significado oculto. Por vezes utilizamos a razão para compreende-la mas, quando não a compreendemos, ela mesma se infiltra e nos penetra.
A melhor poesia é feita de metáforas, os livros sagrados são feitos de metáforas, é através de metáforas que falamos com o divino.