Marina Manda Lembranças O filme já havia começado e não cheguei a ver nem título nem créditos, me atraiu por ser legendado e em francês. Não...
Marina Manda Lembranças
O filme já havia começado e não cheguei a ver nem título nem créditos, me atraiu por ser legendado e em francês. Não planejava vê-lo até o fim, apenas me distrair um pouco antes de dormir. Mas Charlotte Gainsburg entrou em quadro e soube que tinha coisa boa pela frente.
Demorei a saber o que estava vendo. Em toda a primeira parte do filme, relativa à relação entre mãe e filho, tão estreita e tecida de tantas exigências, teria sido impossível saber que se tratava da autobiografia do escritor Romain Gary, porque até mesmo o seu nome era diferente.
Chamava-se Roman Kacew ao nascer em Vilnus, na Lituânia. E assim se chamou até a idade adulta. O fato de ter trocado de nome e ter adotado cinco pseudônimos ao longo da vida autoral, um deles, Émile Ajar, revelado só após sua morte, nos diz que Gary não se sentia confortável na própria pele.
Ao compreender que era a vida dele que estava vendo, minha memória se recompôs como um Lego. E me vi na fila do cinema Paissandu indo ver “Acossado” de Goddard cuja estrela era Jean Seberg, que adiante casou com Gary, divorciou-se dele e, depois de casar mais um par de vezes, acabou se suicidando a poder de comprimidos, deitada no banco de trás de uma carro, enrolada em um cobertor. Seu corpo só foi achado 10 dias mais tarde.
Menos de um ano depois Romain Gary também se suicidou, com um tiro.
E me revi indo assistir “Bonjour Tristesse”, também com Seberg. Filme gerado pelo romance de Françoise Sagan, que assim como toda a minha geração havia lido tão logo saiu.
E revivi a época tumultuada das Panteras Negras, porque após o suicídio de Jean Seberg, Romain Gary convocou a imprensa – gerando matéria nos jornais do mundo todo – e denunciou o FBI como responsável pela morte da sua ex-mulher, o que mais tarde se provou verdade. Seberg envolvida em intenso romance com o líder das Panteras, Hakim Jamal, vez doações vultuosas ao movimento, e o FBI a perseguiu, a espionou, arruinou sua imagem e divulgou notícias falsas que a levaram a entrar em trabalho de parto prematuramente. A bebê morreu dois dias depois. Durante 9 anos Seberg tentou o suicídio em proximidade da data.
O título do filme do qual comecei falando e que me levou ao Lego, é o mesmo do livro de Gary, “Promessa ao amanhecer” e nos leva a entender porque um homem tão bem sucedido acabou se dando um tiro. Escreveu Gary, “Com o amor maternal, a vida nos faz, ao amanhecer, uma promessa que não cumprirá jamais.”
A promessa que Nina, sua mãe lhe fez era dupla, mas fundiu-se como um bloco no futuro do filho. Por um lado lhe garantia que “Seria um Victor Hugo”, “Um diplomata famoso na representação da França”, “Aplausos o receberiam em toda parte.” Pelo outro lhe prometia amor eterno. Esta última parte, ela tentou cumprir: hospitalizada porque diabética e sentido chegar o fim, escreveu 250 cartas em poucos meses e as mandou a uma amiga pedindo que as enviasse, gotejadas, ao filho no front, para que lutasse sereno, livre do peso da sua morte.
As exigências veementes de Nina, jamais seriam consideradas cumpridas, porque o cumprimento estava atado à manutenção do amor materno. De nada adiantou ser condecorado pela atuação como comandante de esquadrilha na Segunda Guerra, de nada serviu brilhar como diplomata, de nada valeu ser único autor francês a receber duas vezes o prêmio Goncourt – porque isso contrariava o regulamento, a segunda vez concorreu como Émile Ajar, daí a revelação só acontecer pós mortem – Não importa o que ele fizesse, Nina não voltaria para abraçar, proteger, exigir, aplaudir o menino que nascera Kacew, e que ao longo toda a vida havia tentado ser outro, para escapar à incompletude.