Marina Manda Lembranças Confesso ter chorado ao ver na TV o embarque de não sei mais quanto milhares de bois vivos para um país árabe. Ao co...
Marina Manda Lembranças
Confesso ter chorado ao ver na TV o embarque de não sei mais quanto milhares de bois vivos para um país árabe. Ao contrário da boa jornalista que sempre fui, estou fornecendo dados incompletos. Não era hora de memorizar dados. Era hora de sofrer com os animais.Haviam chegado em longos caminhões com carretas, estacionados debaixo do sol sabe-se lá a quantas horas ou dias. E me perguntei de onde vinham, quantos dias teriam viajado, sem dormir, amontoados, pisando na própria bosta e urina. Através de corredores da tábuas foram conferidos graças aos ‘brincos’ nas orelhas e transferidos para o altíssimo navio, equipado para recebe-los. Foi dito que a viagem até o país comprador duraria vinte dias.
Impossível não pensar nos navios negreiros e no sofrimento imposto pela longa travessia. O aperto, a escuridão, a angústia serão os mesmos. Os bois também não sabem para onde estão sendo levados, não falam a língua dos seus captores, e não sabemos se se interrogam sobre seu destino. Destino até mais cruel, porque não viajam para a escravidão mas para a morte.
Não sei se a necessidade de receber os bois vivos é imposição religiosa ou de saúde. Não é isso que interessa. O que interessa é o nosso descaso pelo sofrimento dos animais, nossa forma de pensar que bicho é bicho, foi criado para nos alimentar, nos servir, nos dar lucro, sem que tenhamos qualquer respeito pelo seu sentir.
No entanto, todos nos comovemos diante da onça com as patas queimadas e enfaixadas, vítima do incêndio no Pantanal. E diante da anta grávida arriada pela sede. Não sei quantos se comoveram vendo as caveiras dos jacarés e os novelos das cobras, comidos pelo mesmo fogo. Sei que eu estava entre eles.
Só a vida selvagem nos encanta, pinguins e baleias, golfinhos e flamingos, mico leão dourado. Mas os meigos elefantes continuam sendo mortos para fabricar mimos com o marfim de suas presas, e as últimas duas rinocerontes-brancas-do-norte têm que ser protegidas dia e noite por quatro guardas armados para evitar seu assassinato por parte dos caçadores de chifre de rinoceronte, precioso na China como afrodisíaco masculino.
Damos aos animais o mesmo tratamento que dispensamos aos humanos. Para os próximos, os mais queridos, os semelhantes, tudo. Para os outros, só uso e cegueira. Pois tratamos nossos pets como príncipes do lar, com direito a iguarias, salão de beleza, limpeza de dentes e perfume, enquanto compramos carne empacotada no supermercado com a mesma indiferença com que adquirimos feijão ou comida em lata.
O sofrimento e o destino de bois, porcos e galinhas, não nos tocam. Nem nos comovem suas crias. Que pintinhos sejam criados em encubadeiras, sem os ensinamentos da mãe, pouco se nos dá. Que bezerros sejam privados do leite, só nos interessa na medida em que o leite nos é destinado.
Galinhas, só encantavam Clarice Lispector, que na infância havia se debruçado sobre elas, interrogante. Até mesmo no recente episódio pandêmico protagonizado por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, as galinhas só entram como caça a ser transformada em comida suculenta. Não ficou claro quem das duas matou a vítima. Mas, pela idade de Fernandona, sei que viu muita galinha chegar viva em casa, atada pela patas, e ser trucidada na cozinha, ou então ser caçada no sítio dos avós em Jacarepaguá e ter a mesma sorte. Fernandinha, ao contrário, só recebeu galinha em partes, sem pele, sem penas, sem identidade. Por mim, quem matou foi a mãe.