Marina Manda Lembranças L i em crônica de Agualusa uma referência ao livro de Fatema Mernissi, “O harém e o Ocidente”. Não sabia que a autor...
Marina Manda Lembranças
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Ela faz uma análise detalhada de Sherazade que, embora personagem, considera “uma heroína política, uma libertadora do universo muçulmano”. Seu primeiro talento era a inteligência. E seu plano era utiliza-la para domar o rei Xariar através de palavras e impedir que a matasse. Não era nenhuma desavisada, muito pelo contrário, tinha uma mente bem alimentada. Nas primeiras páginas de “As mil e uma noites” descreve-se seu conhecimento, “havia lido livros, histórias, biografias dos antigos reis e relatos das nações antigas. Diz-se que havia reunido mil volumes referentes à história dos povos extintos, dos antigos reis e dos poetas”. Tinha feito dever de casa antes de candidatar-se a casar com o rei que não se cansava de mandar matar as jovens esposas após a noite de núpcias.
Escreve Mernissi que o segundo talento de Sherazade é de natureza psicológica, modificar atitude e pensamento de um assassino em série, só através de narrativas. Entre eles não havia diálogo algum. Ao longo dos seis primeiros meses Xariar não lhe dirige a palavra. Ela só podia avaliar acerto e erro pela expressão do seu rosto, e qualquer erro lhe seria fatal. Esta capacidade de harmonizar elementos diferentes e antecipar-se aos fatos é o que, no âmbito militar, se chama estratégia.
Além do mais, Sherazade tinha que dominar o medo, para poder entregar-se às histórias que narrava, pois só a entrega do narrador permite transmitir verdade a narrativas fantásticas. E, sem dominar o medo, não conseguiria imprimir às histórias o ritmo certo, para faze-las acabar ao amanhecer antes de chegar ao fim, e ter o “gancho” exato para voltar a elas na noite seguinte.
Tudo isso condimentado com sexo, já que, passadas mil e uma noites, Sherazade havia tido três filhos com Xariar.
Mas, escreve Mernissi, “o que esse homem buscava não era sexo, era uma psicoterapeuta”. O rei sofria de moral baixa em alto grau, estava furioso por não entender o sexo oposto e por não saber porque fora traído por sua primeira esposa. Ao cabo de seis meses exclama: “Ai, Sherazade! me fizeste duvidar do meu poder monárquico. E conseguiu que eu lamentasse meu passado de violência contra as mulheres e a matança de tantas moças”. Em menos de 200 dias, a psicoterapeuta-narradora havia conseguido mudar o ponto de vista de seu cliente.
Depois de anos ouvindo – daquela que estava destinada a morrer – narrativas vindas de diversos países e sentindo-se prisioneiro na rede da sua voz, Xariar sabia que Sherazade possuía um talento precioso e um segredo. E lhe pergunta:
— Quem és? O que queres?
— Quem sou? Sou Sherazade, a que lhe ofereceu o prazer de ouvir seus contos durante anos e anos, de tão assustada que eu estava. Agora alcancei o ponto em que posso oferecer-lhe também meu amor, pois me libertei do temor que me inspirava. E o que quero? Quero que meu senhor, o Rei, prove o sabor da serenidade. Quero que sinta a felicidade de viver em um mundo sem ansiedade.”
Apresentando-lhe narrativas provenientes da tradição oral de diversas culturas, Sherazade deu a diversidade de presente ao monarca. E olhar a vida de diversas maneiras, pode ser o único meio de entender os outros. Parece provável que, ouvindo mil e uma histórias de amor, ciúme, inveja, traição, abandono, Xariar tenha compreendido que a traição praticada por sua primeira esposa com um escravo núbio, tinha menos a ver com sexo do que com vingança por sentir-se aprisionada no harém do marido.
É uma longa comparação entre duas culturas, dois modos opostos de pensar, dois olhares diferentes sobre a vida e tudo o que a compõe.