Marina Manda Lembranças P rovavelmente motivado pelos últimos dois livros que publiquei, ambos de poesia – “Mais longa vida” para adultos e ...
Marina Manda Lembranças
Palestrante aplicada, procurei definições. Encontrei mais de 100 e, embora vindas de poetas tão, tão mais respeitáveis do que eu, só concordei com poucas.
Por exemplo, nosso amado Drummond diz: “poesia, morte secreta”. Conheci-o bem. Primeiro por receber suas crônicas no Caderno B do Jornal do Brasil, que com frequência vinha entregar pessoalmente num envelopinho azul e sempre assinadas. Depois, devido ao meu casamento com Affonso, autor de alentado e brilhante ensaio sobre o mais ilustre dos mineiros. Sabia que toda noite sentava-se para poetar e que tinha uma máquina trituradora para que rascunhos e tentativas não parassem no lixo e fossem recolhidos por mãos ansiosas. Desde jovem poetava. E nunca me pareceu estar secretamente morrendo. Ao contrário, a poesia lhe transmitia vida e a audácia possível – era homem tão comedido!
De S.T. Coleridge, um dos fundadores do romantismo inglês, pincei esta definição: “as melhores palavras na melhor ordem”. Peço desculpas, mas me parece pouco ou até muito mecânico. Quanto mais para um romântico. Não conheço palavras “melhores”. O que torna uma palavra melhor que outra é o acerto na sua escolha, o encaixe perfeito que ela adquire na frase ou verso, transmitindo-lhe outro valor. E em poesia a ordem pode não ser a melhor para o entendimento, obrigando o leitor a ler o verso ou o poema mais de uma vez. Mas é a melhor ordem para o poeta, porque só naquela ordem consegue, ainda que minimamente, expressar o que lhe vai na alma e cabeça.
Goethe é mais preciso: “a fala do infalável”.
Gostei, ah como gostei, da polonesa Wislawa Srymborska vencedora do Nobel de Literatura em 1996: “mas o que é isso de poesia? Muita resposta vaga já foi dada a esta pergunta, pois eu não sei e não sei e me agarro a isso como a uma tábua de salvação.”
Bonito isso da poesia ser a tábua de salvação do poeta. Mas, pior que as respostas vagas são as respostas “poéticas”.
O fato é que para dizer o indizível a que se referia Goethe, os humanos desde cedo recorreram à poesia. Os mitos são cantados em versos, a saga dos heróis, as invocações das divindades. Não há outra maneira para expressar o mistério.
No Brasil da minha geração lia-se muita poesia. Lembro quando, no clássico, o professor de Português nos disse que no Ministério da Educação estavam distribuindo um livro de Manuel Bandeira. Meu irmão e eu fomos correndo. Era livro pequeno, muito bem editado, com os poemas mais famosos. Foi nossa primeira conquista poética.
Desce cedo, decorei meus poemas favoritos, forma de sempre carregar um livro composto pelas minhas escolhas. Indo de ônibus para a faculdade, repetia os poemas em silêncio e me sentia, no coletivo sem refrigeração, cercada de beleza. Minha lembrança é de todos nós fazermos isso, e derramarmos poemas sobre mesas de bar modestamente regadas. O repertório traçava de cada um retrato bem mais realista que o moderno desenhado pelas redes sociais.
Hoje, quando basta um toque para o poema aparecer no Google, ninguém precisa decorar poesia. Mas não era precisão que nos movia. Era necessidade de apropriação. Ao decorá-lo, o poema fazia-se nosso, aderia à nossa pele como uma tatuagem, e tínhamos a ilusão de absorver com ele a linguagem do poeta.