Marina Manda Lembranças P orque vivo num país em que 180 mulheres são estupradas a cada dia, sendo que a maioria é de meninas até 13 anos – ...
Marina Manda Lembranças
Marina Manda Lembranças
Diz ele que a cama conjugal é o império da “zona cinzenta” ou das relações sexuais não desejadas. Não à toa o título do livro é: “Pas envie ce soir” (que traduzo livremente como “hoje à noite, não” ou, mais direto, “hoje não”).
Lembrei-me da confidência de uma amiga mais velha que, quando não estava a fim de sexo chegava para a beira da cama, cada vez mais à beira, sem que o expediente de nada lhe valesse. Exatamente o que diz Kaufmann: “Na cabeça das mulheres, poucas palavras, pequenos gestos que mostram que o consentimento não está sendo dado, são mensagens enormes, enquanto, do lado dos homens, passam sem serem compreendidos.”
E afirma que num casal, o consentimento sexual não é coisa garantida e as investidas noturnas podem se tornar verdadeiros estupros domésticos. O que, de certo modo, acrescenta mais violência à violência a que já somos submetidas.
“Alguns [homens] não querem ver os sinais, é claro, e outros simplesmente não os vêm. Sobretudo (...) quando após essa resistência inicial, a relação não se demonstra tão penosa. Então o homem pode dizer-se que é assim mesmo que a coisa funciona”.
Kaufmann contesta a tese, constantemente repetida por nossa sociedade masculinista, da necessidade maior de sexo para o homem. Foi provado pela ciência que não existe necessidade fisiológica maior. As mulheres têm exatamente o mesmo desejo de sexo dos homens. Mas pode, e deveria ter o direito de não bater ao mesmo tempo que o deles. Sobretudo quando a mulher carrega o peso triplo de trabalho, casa e filhos, sem a ajuda do companheiro, chega à cama conjugal exausta e ressentida, não exatamente disposta a encontros eróticos.
É a situação de tantos casais em que os homens se deixam servir como senhores absolutos, esquecendo que, na maioria das vezes, as mulheres também trabalham e chegam em casa tão cansadas quanto eles. Tende a se diluir nos casais mais jovens, em que os homens, criados de outra forma e em outra realidade, desempenham tarefas domésticas e ajudam a cuidar dos filhos, mesmo quando bebês.
Kaufmann admite uma diferença entre o desejo masculino e feminino. Na sua opinião, o desejo masculino é mais mecânico, independe do amor, do sentimento, e reage a qualquer estímulo. O desejo da mulher é emocional, exige uma qualquer centelha de paixão para acender-se e liberar a sexualidade.
Ora, num casal constituído há tempos a mulher pode sentir-se apenas como prazer garantido para o outro, presa no “direito conjugal” que sequer lhe dá o direito de negar-se, sempre sob a ameaça de que o companheiro procure outra para dar vasão à sua suposta necessidade maior. É o bastante para apagar centelhas.
Nem a maioria dos homens se esforça grandemente para acendê-las. Ou por considerar que basta o seu desejo para liberá-las, ou por considerar que só sua satisfação importa ou, mais raramente, por temer a perda da ereção.
Como disse recentemente a especialista em Direito Penal, Maíra Zapater, “Sempre que há uma denuncia de estupro, as provas precisam provar dois pontos: que houve relação sexual e que não houve consentimento”. E no quarto de um casal parece pouco provável a presença de testemunhas.